Em seguida devemos tratar dos efeitos do governo divino em especial. E sobre esta questão quatro artigos se discutem:
O primeiro discute–se assim. Parece que as criaturas não necessitam de ser conservadas na existência por Deus.
1. – Pois, o que não pode deixar de existir não necessita ser conservado na existência, assim como o que não pode morrer não o necessita, para que não morra. Ora, há certas criaturas, que por natureza, não podem deixar de existir. Logo, nem todas necessitam ser conservadas na existência por Deus. Prova da média. O que é inerente a um ser o é necessariamente, e é impossível que o oposto também o seja; assim, o binário há de necessariamente ser par e é impossível seja impar. Ora, a existência em si resulta da forma, porque um ser é atual na medida em que tem forma. Ora, como há certas criaturas que são formas subsistentes, segundo foi dito, antes, dos anjos, a essas a existência, em si, é inerente. E a mesma essência têm os seres cuja matéria é potencial em relação a uma só forma, conforme se disse antes, dos corpos celestes. Logo, tais criaturas existem por natureza necessariamente e não podem deixar de existir; pois a potência para o não ser não pode fundar–se nem na forma, de que, em si, resulta a existência; nem na matéria existente com uma forma, que não pode perder, por não ser potencial em relação a outra forma.
2. Demais. – Deus é mais poderoso que qualquer agente criado. Ora, há agentes criados que podem comunicar ao seu efeito a conservação na existência; assim, cessada a ação do construtor, a casa permanece; cessada a ação do fogo, a água permanece aquecida por algum tempo. Logo, com maior razão, Deus pode cessada a sua operação, conferir à sua criatura a conservação na existência.
3. Demais. – Nada de violento pode suceder sem alguma causa agente. Ora, não é natural, mas violento, que uma criatura tenda para o não ser, pois todas buscam naturalmente a existência. Logo, nenhuma criatura pode tender para o não ser, sem que algum agente a leve à corrupção. Mas há certos seres sem corrupção possível, como as substâncias espirituais e os corpos celestes. Logo, tais criaturas não podem tender para o não ser, mesmo tendo cessado a operação de Deus.
4. Demais. – Há de ser por alguma ação que Deus conserva as coisas na existência. Ora, qualquer ação eficaz do agente causa algum efeito. Logo, é necessário que a ação de Deus conservador cause algo, na criatura. Ora, tal não se dá. Pois, tal ação não dá a existência à criatura, porque o já existente não pode vir a existir; nem algo de acrescentado, porque então, ou Deus não conservaria a criatura continuamente na existência, ou lhe acrescentaria algo, continuamente, o que é inadmissível. Logo, as criaturas não são conservadas na existência por Deus. Mas, em contrário, diz a Escritura: Sustentando tudo com a palavra da sua virtude.
SOLUÇÃO. – Necessário é admitir–se, tanto segundo a fé, como segundo a razão, que as criaturas são conservadas na existência por Deus. Para cuja evidência deve–se considerar que, de duplo modo um ser é conservado por outro. – De um modo, indiretamente e por acidente; assim, diz–se que conserva uma cousa quem dela remove o que a corrompe; por exemplo, diz–se que conserva uma criança quem a guarda para que não caia no fogo. E neste sentido se diz que Deus conserva, não todos os seres, mas alguns, porque certos há que não tem elementos corruptores, que necessitem ser removidos, para que sejam conservados na existência. – De outro modo se diz que um ser conserva outro, por si e diretamente, quando o conservado depende do conservador, a tal ponto que não pode existir sem este. E deste modo todas as criaturas necessitam da conservação divina. Pois, todas dependem de Deus, a tal ponto que nem por um momento poderiam subsistir, mas voltariam ao nada, se a operação divina não as conservasse na existência, como diz Gregório. E isto pode ser compreendido do modo seguinte. Todo efeito depende da sua causa enquanto causa. Ora, devemos notar que qualquer agente é causa do seu efeito, só quanto ao vir a ser deste, e não diretamente, quanto à essência do mesmo. E isto se dá tanto com as coisas artificiais como com as naturais. Assim, o construtor é causa da casa quanto ao vir a ser desta e não, diretamente, quanto à existência dela. Porquanto, é manifesto que a forma da casa, que é composição e ordem, resulta da virtude natural de certas coisas. Pois, como o cozinheiro coze o alimento, ajudando–se da virtude natural ativa do fogo, assim o construtor faz a casa, servindo–se do cimento, das pedras e madeiras, susceptíveis e conservativas de tal composição e de tal ordem. Por onde, a existência da casa depende das naturezas dessas coisas, como o vir a ser dela depende da ação do construtor. – Ora, a essa mesma luz devemos considerar as coisas naturais. Porque, se um agente não é causa da forma, como tal, não será, por si, causa da existência resultante de tal forma, mas será causa do efeito, só quanto ao vir a ser. Mas é manifesto que se dois entes são da mesma espécie, um não pode ser, por si, causa da forma como tal do outro; porque então seria também causa da própria forma, pois arribas tem a mesma essência. Mas pode ser causa da dita forma, enquanto pertencente a uma determinada matéria, isto é, enquanto essa matéria adquire a tal forma. O que é ser causa só do vir a ser, como quando um homem gera outro e um fogo, outro fogo. E, portanto, sempre que é próprio ao efeito natural receber a impressão do agente, com a mesma essência que ela tem neste, então o vir a ser e não a existência do efeito é que depende do agente. Mas, às vezes, não é da natureza do efeito receber a impressão do agente com a mesma essência que ela tem neste; como é patente em todos os agentes que não produzem o especificamente semelhante; assim os corpos celestes são causa da geração dos corpos inferiores, especificamente deles dissemelhantes. E tal agente pode ser causa da forma, quanto à essência de uma determinada forma e não só enquanto esta é recebida por tal matéria; sendo, portanto, causa, não só do vir a ser, mas também da existência. Por onde, assim como o vir a ser de uma cousa não pode permanecer, cessada a ação do agente, causa do vir a ser do efeito; assim também a existência da mesma não pode permanecer, cessada a ação do agente, causa não só do vir a ser, como também da existência do efeito. E esta é a razão porque a água aquecida conserva o calmo, cessada a ação do fogo; ao passo que o ar não permanece iluminado, nem por um momento cessada a ação do sol. Pois a matéria da água é susceptível do calor do fogo do mesmo modo pelo qual ele está no fogo; e por isso, unindo–se perfeitamente com a forma do fogo conservará sempre o calor; se, porém participar algo imperfeitamente da forma do fogo, por uma como incoação, o calor não se conservará sempre, mas só temporariamente, por causa da fraca participação do princípio do calor. Ao passo que ao ar de nenhum modo é natural receber a luz, do mesmo modo pelo qual ela está no sol, de maneira que receba a forma do sol, que é o princípio da luz; e por isso, cessada a ação do sol, imediatamente cessa a luz, que se não radica no ar. Ora, todas as criaturas estão para Deus, como o ar para o sol iluminador. Pois, assim como o sol luz por natureza, ao passo que o ar se torna luminoso participando, não da natureza, mas da luz do sol; assim, só Deus existe pela sua essência, porque esta é a sua existência; ao passo que todas as criaturas têm a existência participada, e não porque se identifique, nelas, a existência com a essência. Por onde, diz Agostinho: Se o poder governativo de Deus cessasse por algum instante nos seres criados, também cerraria imediatamente a espécie deles e toda a natureza sucumbiria, E o mesmo: Assim como o ar, com a presença da luz torna–se lúcido, assim o homem, quando Deus lhe esta presente, ilumina–se e, quando ausente, imediatamente se entenebrece.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A existência, em si, resulta da forma da criatura, suposto, contudo o influxo de Deus. Por onde, a potência para o não ser, nas criaturas espirituais e nos corpos celestes, está antes em Deus, que pode subtrair o seu influxo, do que na forma ou na matéria de tais criaturas.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Deus não pode comunicar a nenhuma, criatura que se conserve existente, cessada a sua operação; assim como não lhe pode comunicar que não seja a causa dela. Pois, uma criatura precisa de ser conservada por Deus, na medida em que a existência do efeito depende da causa da existência. Por onde, não há símile com o agente, que não é causa do existir, mas só do vir a ser.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A objeção procede quanto à conservação resultante da remoção do elemento corruptor: e, dessa, nem todas as criaturas necessitam, como já se disse.
RESPOSTA À QUARTA. – Deus não conserva as coisas por uma nova ação, mas continuando a ação pela qual deu a existência; e essa ação é independente do movimento e do tempo, assim como a conservação da luz, no ar, resulta do influxo continuado do sol.
O segundo discute–se assim. – Parece que Deus conserva imediatamente todas as criaturas.
1. – Pois, Deus é conservador das coisas pela mesma ação pela qual é criador, como já se disse. Ora, Ele é o criador imediato de todas as coisas. Logo, também é conservador imediato delas.
2. Demais. – Uma cousa é mais próxima de si mesma que de qualquer outra. Ora, não pode ser comunicado a nenhuma criatura o conservar–se a si mesma. Logo, com maior razão, não lhe pode ser o conservar a outra. Portanto, Deus conserva todas as coisas, sem a mediação de nenhuma causa média conservadora.
3. Demais. – O efeito é conservado na existência pela sua causa, não só quanto ao vir a ser, mas também quanto ao existir. Ora, todas as coisas criadas, segundo parece, não são causas dos seus efeitos, senão quanto ao vir a ser; pois, são apenas causas motoras como antes já se estabeleceu. Logo não são causas conservadoras da existência dos seus efeitos. Mas, em contrário, uma coisa é conservada pelo mesmo ser que lhe deu a existência. Ora, Deus dá a existência às coisas mediante certas causas médias. Logo, também as conserva na existência, mediante certas causas.
SOLUÇÃO. – Como já se disse de duplo modo um ser conserva outro na existência: indireta e acidentalmente, removendo ou impedindo a ação do corruptor; e diretamente e por si, porque desse ser depende a existência do outro, como da causa depende a existência do efeito. Ora, de ambos esses modos uma criatura é conservativa da existência de outra. Pois é manifesto que, mesmo nas coisas corpóreas, muitas são as que impedem as ações dos elementos corruptores e por isso se chamam conservativas de outras; assim, o sal impede a putrefação da carne e, semelhantemente, o mesmo se verifica com muitas outras coisas. Ora, dá–se também que a existência de certos efeitos depende de certas criaturas. Pois, sendo muitas as causas ordenadas, necessariamente é que o efeito dependa, primária e principalmente, da causa primeira; secundariamente, porém, de todas as causas médias. Por onde, principalmente, a causa primeira é conservativa do efeito; secundariamente porém todas as causas médias; e tanto mais quanto fôr a causa mais elevada e mais próxima da causa primeira. E por isso a conservação e a permanência das coisas atribui–se às causas superiores, mesmo nos seres corpóreos. Assim, como diz o Filósofo, o movimento diurno, que é o primeiro, é a causa da continuidade da geração; ao passo que o movimento segundo, pelo zodíaco, é a causa da diversidade, quanto à geração e à corrupção. E semelhantemente, os astrólogos atribuem a Saturno, supremo entre os planetas, o fixo e o permanente. E, portanto devemos concluir que Deus conserva as coisas na existência, mediante certas causas.DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Deus criou imediatamente todas as coisas, mas na criação mesmo delas estabeleceu–lhes uma ordem, de modo que umas dependessem de outras, pelas quais secundariamente se conservassem na existência; pressuposta porém a conservação principal que de Deus mesmo procede.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Causa própria sendo a conservativa do efeito dela dependente, assim como não é possível a nenhum efeito ser causa de si mesmo, mas lhe é contudo possível ser causa de outro; assim também, embora nenhum efeito possa ser conservativo de si mesmo, pode contudo sê–lo de outra cousa.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Nenhuma criatura pode ser causa de outra, de modo que esta adquira uma nova forma ou disposição, salvo por meio de alguma mutação; pois, aquela sempre atua sobre um sujeito pressuposto. Mas depois que infundiu uma forma ou disposição no efeito, conserva–a sem nenhuma outra imutação deste. Assim compreende–se que haja mutação no ar recém–iluminado: mas a conservação da luz se dá sem nenhuma imutação do ar, só pela presença da luz.
O terceiro discute–se assim. – Parece que Deus não pode reduzir nenhum ser ao nada.
1. – Pois, diz Agostinho, Deus não é causa da tendência para o não ser. Ora, tal se daria se reduzisse ao nada qualquer criatura. Logo, Deus não pode reduzir nenhum ser ao nada.
2. Demais. – Deus, pela sua bondade, é a causa da existência das coisas, pois, como diz Agostinho, nós existimos porque Deus é bom. Ora, Deus não pode deixar de ser bom. Logo, não pode fazer com que as coisas deixem de existir, o que se daria se as reduzisse ao nada.
3. Demais. – Por alguma ação é que Deus haveria de reduzir seres ao nada. Ora, tal não é possível; pois, como toda ação tem como termo algum ser, também a ação do corruptor teria como termo um ser gerado, porque a geração de um é a corrupção de outro. Logo, Deus não pode reduzir nenhum ser ao nada. Mas, em contrário, diz a Escritura: Castiga–me, Senhor; porém seja isto segundo o teu juízo, e não no teu furor, para que não suceda que tu me reduzas a nada.
SOLUÇÃO. – Alguns ensinaram que Deus produziu as coisas agindo por necessidade de natureza. E a ser isso verdade, Ele não poderia reduzir nenhum ser ao nada, assim como não pode sofrer mutação na sua natureza. Mas, como já se demonstrou antes, essa posição é falsa e absolutamente contrária à fé católica, que ensina que Deus produziu os seres por livre vontade, conforme a Escritura: quantas coisas quis, todas fez o Senhor. Logo, o comunicar Deus a existência à criatura depende da sua vontade; nem, como já se disse, conserva a existência das coisas de modo diverso do pelo qual continuamente lhas dá. Por onde, assim como, antes de as coisas existirem, podia não lhes outorgar a existência e, assim, não as fazer; do mesmo modo, depois de havê–las feito, pode deixar de lhes influir a existência e, então elas deixariam de existir, o que seria reduzi–las ao nada.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. O não ser não tem, por si, causa; porque nada pode ser causa senão na medida em que é ente, pois este, propriamente falando, é a causa da existência. Por onde, Deus não pode ser a causa da tendência para o não ser; essa tendência as criaturas a trazem em si mesmas, como vindas do nada. Mas, por acidente, Deus pode ser causa da redução das coisas ao nada, subtraindo–lhes a sua ação.RESPOSTA À SEGUNDA. – A bondade de Deus é causa das coisas, não por necessidade de natureza, porque essa bondade não depende das coisas criadas; mas age por livre vontade. Por onde, assim como Deus podia, sem prejuízo da sua bondade, não dar a existência às coisas; assim também, sem detrimento da mesma, pode não lhas conservar.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Não por uma ação, mas por cessar de agir, é que Deus reduziria um ser ao nada.
O quarto discute–se assim. – Parece que há seres reduzidos ao nada.
1. – Pois, o fim corresponde ao princípio. Ora, no princípio, só Deus existia. Logo, as criaturas terão um fim tal, que nada existirá a não ser Deus; e assim serão reduzidas ao nada.
2. Demais. – Toda criatura tem potência finita. Ora, nenhuma potência finita se estende até o infinito; por isso Aristóteles prova que uma potência finita não pode mover, num tempo infinito. Logo, nenhuma criatura pode durar infinitamente. E, portanto, será reduzida ao nada.
3. Demais. – A forma e o acidente não tem a matéria, como parte. Ora, às vezes deixam de existir. Logo, são reduzidas ao nada. Mas, em contrário, diz a Escritura: Eu aprendi que todas as obras que Deus fez perseveram para sempre.
SOLUÇÃO. – O que Deus faz, em relação à criatura, ora provém do curso natural das coisas; ora é operado milagrosamente, fora da ordem natural imposta às criaturas, como a seguir se dirá. – Quanto ao que Deus há de fazer, segundo a ordem natural imposta às coisas, isso pode ser deduzido da própria natureza delas; o que porém se faz milagrosamente, ordena–se à manifestação da graça, conforme o Apóstolo que diz: A cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito; e a seguir entre outras coisas trata de operação dos milagres. Ora, as naturezas das criaturas demonstram que nenhuma delas é reduzida ao nada; porque ou são imateriais e então não tem a potência para o não ser; ou são materiais e então permanecem sempre, ao menos quanto à matéria, que é incorruptível, como sujeito existente da geração e da corrupção. Por outro lado, reduzir algum ser ao nada não condiz com a manifestação da graça; pois, a potência e a bondade divinas mostram–se sobretudo na conservação das coisas na existência. – Por onde, deve–se dizer, simplesmente, que absolutamente nada será reduzido ao nada.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O terem sido as coisas trazidas à existência, do nada, manifesta a potência de quem as produziu. Ora, se fossem reduzidas ao nada impediriam essa manifestação, porque o poder de Deus se mostra sobretudo no conservá–las na existência, conforme aquilo do Apóstolo: Sustentando tudo com a palavra da sua virtude.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A potência da criatura para existir é apenas receptiva; ao passo que a potência ativa é de Deus mesmo, de quem provém o influxo para a existência. Por onde, o durarem as coisas infinitamente resulta da infinidade da divina virtude. A virtude de certas coisas, porém, é determinada a permanecer num tempo determinado, porque podem ser impedidas de receber o influxo para a existência, proveniente de Deus, por algum agente contrário, ao qual uma virtude finita não pode resistir num tempo infinito, mas só num tempo determinado. Por onde, os seres que não tem contrários, embora tenham a virtude finita, perseveram eternamente.
RESPOSTA À TERCEIRA. – As formas e os acidentes não são entes completos, porque não subsistem; mas, umas e outros tem algo do ente; pois, chamam–se entes, porque fazem alguma cousa existir. E contudo, do modo pelo qual existem, não serão absolutamente reduzidos ao nada; não porque alguma parte deles permaneça; mas porque permanecem na potência da matéria e do sujeito.