Suma Teológica

Summa Theologiae Quaestiones

Questões

Quaestiones
prima pars Q.109 →

Da ordem dos anjos maus.

Em seguida devemos considerar a ordem dos anjos maus. E sobre esta questão quatro artigos se discutem:

Art. 1 — Se há ordens de demônios.

(II Sent., dist. VI. Q. 1, a. 4; IV dist. XLVII, q. 1, a. 2, qa 4; Ephes., cap. VI, lect. III). O primeiro discute-se assim. — Parece que não há ordens de demônios.

1. — Pois, a ordem é da essência do bem, como o modo e a espécie, segundo diz Agostinho. E ao contrário, a desordem é da essência do mal. Ora, nos bons anjos, nada é desordenado. Logo, não há ordens de maus anjos.

2. Demais. — As ordens angélicas estão compreendidas em alguma hierarquia. Ora, os demônios, privados de toda santidade, não estão em nenhuma hierarquia, que é o principado sagrado. Logo, não há ordens de demônios.

3. Demais. — Os demônios decaíram das varias ordens dos anjos, como se diz comumente. Se pois, alguns demônios são considerados pertencentes a alguma ordem, porque dela decaíram, conclui-se que lhes deveriam ser atribuídos os nomes das várias ordens. Ora, nunca se soube que fossem chamados Serafins, Tronos ou Dominações. Logo, por igual razão, não estão nas demais ordens. Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Ef 6, 12): nós temos que lutar contra os Principados e Potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso.

SOLUÇÃO. — Como já se disse (q. 108, a. 4, 7, 8), a ordem angélica é considerada em relação ao grau da natureza e ao da graça. Ora, a graça tem duplo estado: o imperfeito, que é o de merecer; e o perfeito, que é o da glória consumada. Se, pois, considerarem-se as ordens angélicas quanto à graça imperfeita, então os demônios lhes pertenceram, outrora, mas delas decaíram: e isto é conforme ao que já estabelecemos (q. 62, a. 3), que todos os anjos foram criados em graça. Se porém forem considerados quanto à natureza, então ainda agora eles a elas pertencem, pois não perderam os dons da natureza, como diz Dionísio.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Como já se estabeleceu (q. 49, a. 3), o bem pode existir sem o mal, mas não este, sem aquele. Por onde, os demônios, na medida em que têm a natureza boa, são ordenados.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A ordenação dos demônios, considerada em relação a Deus ordenador, é sagrada, pois, ele usa deles para si mesmo. Mas em relação à vontade dos demônios, não o é, porque abusam da natureza própria, para o mal.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O nome de Serafins é imposto por causa do ardor da caridade; o de Tronos, por habitar neles a divindade; o de Dominações, por fim, importa uma certa liberdade. Tudo o que se opõe ao pecado. Por onde, tais nomes não se podem atribuir aos anjos pecadores.

Art. 2 — Se entre os demônios há superiores.

(Supra. Q. 63. a. 8; II Sent., dist. VI, q. 1. a. 4; IV, dist. XLVII, a. 2, qa 4). O segundo discute-se assim. — Parece que, entre os demônios, não há superiores.

1. — Pois, toda superioridade se funda nalguma ordem da justiça. Ora, os demônios perderam totalmente a justiça. Logo, entre eles não há superiores.

2. Demais. — Onde não há obediência e sujeição não há superioridade. Ora, esta não pode existir sem a concórdia, que de nenhum modo existe nos demônios, conforme a Escritura (Pr 23, 10): Entre os soberbos há sempre contendas. Logo entre os demônios não há superiores.

3. Demais. — Se entre eles existisse alguma superioridade, esta haveria de lhes pertencer, quer à natureza, quer à culpa ou à pena. Ora, não à natureza, porque não desta, mas do pecado é que resultou a sujeição e a servidão. Nem à culpa ou à pena, porque então os demônios superiores, que pecaram mais, estariam sujeitos aos inferiores. Logo, não há superiores entre os demônios. Mas, em contrário, diz a Glossa: Enquanto durar o mundo, os anjos governarão, os anjos; os homens, os homens e os demônios, os demônios.

SOLUÇÃO. — Como o ato resulta da natureza da coisa, nos seres, cuja natureza é ordenada, necessariamente hão-de os atos se ordenar entre si. Como é patente nos seres corpóreos; pois, porque os corpos inferiores dependem, por ordem natural, dos corpos celestes, os atos e os movimentos daqueles estão sujeitos aos atos e movimentos destes. Ora, é manifesto, pelo que já foi dito (a. 1), que os demônios estão constituídos uns sob a dependência dos outros. Por onde, os atos daqueles dependem dos atos destes. E nisto consiste a essência da superioridade, a saber, que o ato do súdito esteja submetido ao do superior. Assim, pois, a disposição natural mesma dos demônios exige que haja entre eles superior. E isto também convém à divina sabedoria, que nada deixa desordenado no universo, e que atinge fortemente desde uma extremidade à outra, e dispõe todas as coisas com suavidade, como diz a Escritura (Sb 8, 1).

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A superioridade, nos demônios, não se lhes funda na justiça, mas na justiça de Deus que tudo ordena.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A concórdia, pela qual uns demônios obedecem a outros, não nasce da amizade que tenham entre si, mas da nequícia comum com que odeiam os homens e repugnam à justiça de Deus. Pois, é o próprio aos homens ímpios unirem-se e submeterem-se aos de forças superiores, para executarem a própria nequícia.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Os demônios não são iguais por natureza e por isso há entre eles superiores. O que não se dá com os homens, iguais por natureza. Ora, submeterem-se os demônios inferiores aos superiores, não é para bem, mas antes para mal destes; pois, fazer o mal sendo a máxima miséria, governar maus é ser mais miserável que eles.

Art. 3 — Se nos demônios há iluminação.

O terceiro discute-se assim. — Parece que nos demônios há iluminação.

1. — Pois, a iluminação consiste na manifestação da verdade. Ora, um demônio pode manifestar a verdade a outro, porque os superiores têm maior vigor, quanto ao acume da ciência natural. Logo, os demônios superiores podem iluminar os inferiores.

2. Demais. — O corpo com luz superabundante pode iluminar o que é dela deficiente; assim, o sol ilumina a lua. Ora, os demônios superiores têm mais abundante participação do lume natural. Logo, podem iluminar os inferiores. Mas, em contrário. — A iluminação vai com a purificação e a perfeição, como antes se disse (q. 106, a. 1, 2). Ora, purificar não cabe aos demônios, conforme a Escritura (Ecle 34, 4): que coisa será limpa por um imundo?Logo, nem a iluminação.

SOLUÇÃO. — Nos demônios não pode haver iluminação. Pois, como já se disse (q. 107, a. 2), a iluminação sendo propriamente, a manifestação da verdade, ela se ordena por Deus, que ilumina todo intelecto. Mas, outra manifestação da verdade pode ser a locução, como quando um anjo manifesta a outro o seu conceito. Ora, a perversidade dos demônios faz com que um não procure ordenar o outro para Deus, mas, antes, afastá-lo da ordem divina. E por isso um não ilumina o outro, mas pode comunicar a este o seu conceito, por meio da locução.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Não é qualquer manifestação da verdade que se domina iluminação, mas só a que foi referida.

RESPOSTA À SEGUNDA. — No que diz respeito ao conhecimento natural, não é necessária a manifestação da verdade, nem entre os anjos, nem entre os demônios. Pois, como já se disse (q. 55, a. 2), logo, desde o princípio do conhecimento deles, conheceram tudo o que respeita o conhecimento natural. Por onde, a maior plenitude de luz natural, existente nos demônios superiores, não pode ser causa de iluminação.

Art. 4 — Se os bons anjos têm superioridade sobre os maus.

O quarto discute-se assim. — Parece que os bons anjos não têm superioridade sobre os maus.

1. — Pois, a superioridade, nos anjos, se baseia sobretudo na iluminação. Ora, os maus anjos, sendo trevas, não são iluminados pelos bons. Logo, estes não têm superioridade sobre aqueles.

2. Demais. — O que os súbditos fazem de mal é atribuído à negligência do chefe. Ora, os demônios fazem muito mal. Se, pois, estão sujeitos ao governo dos bons anjos, resulta que há nestes alguma negligência, o que é inadmissível.

3. Demais. — A superioridade dos anjos resulta da ordem da natureza, como se disse antes (a. 2). Ora, se como se diz comumente, os demônios decaíram, das várias ordens, muitos deles são superiores, na ordem da natureza, a muitos bons anjos. Logo, estes não têm superioridade sobre todos os maus. Mas, em contrário, diz Agostinho: o espírito, transviado da vida racional e pecador, é governado pelo de vida racional, pio e justo. E Gregório: chamam-se potestades os anjos a cujo império estão sujeitas as virtudes adversas.

SOLUÇÃO. — Toda a ordem da superioridade está primária e originalmente em Deus; e é participada pelas criaturas, conforme o grau em que se aproximam de Deus. Assim, as mais perfeitas e mais próximas de Deus têm influência sobre as outras. Ora, a máxima perfeição, e que mais aproxima de Deus, é a das criaturas que o fruem, como os santos anjos, e dessa perfeição os demônios estão privados. Por onde, os bons anjos têm superioridade sobre os maus, que são governados por eles.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Os santos anjos revelam aos demônios muitas coisas dos mistérios divinos, quando a divina justiça exige certas se façam pelos demônios, quer para punição dos maus, quer para exercitação dos bons; assim como nas coisas humanas, os assessores do juiz revelam aos algozes a sentença do mesmo. E tais revelações, referidas aos anjos reveladores, são iluminações, porque eles as ordenam para Deus. Não o são, porém, em relação aos demônios, que assim não as ordenam, senão à satisfação da iniqüidade própria.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Os santos anjos são ministros da divina sabedoria. Por onde, assim como esta permite que certos males sejam feitos pelos maus anjos ou pelos homens, por causa do bem que deles venha, assim, os bons anjos não coíbem totalmente os maus de fazerem o mal.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O anjo inferior, na ordem da natureza, governa os demônios, embora superiores, nessa ordem; porque a virtude da divina justiça, a que inerem os bons anjos, é mais poderosa que a virtude natural angélica. Por isso, entre os homens, o espiritual julga todas as coisas, como diz a Escritura (1 Cor 11, 15). E o filósofo diz, que o virtuoso é a regra e a medida de todos os atos humanos.