Suma Teológica

Summa Theologiae Quaestiones

Questões

Quaestiones
prima pars Q.95 →

Do que se refere à vontade do primeiro homem, a saber da

graça e da justiça. Em seguida devemos tratar o que diz respeito à vontade do primeiro homem. E sobre este ponto duas questões se discutem. A primeira, da graça e da justiça do primeiro homem. A segunda, do uso da justiça, quanto ao domínio sobre os demais seres.

Art. 1 — Se o primeiro homem foi criado em graça.

O primeiro discute–se assim. – Parece que o primeiro homem não foi criado em graça.

1. – Pois, a Escritura, distinguindo Adão de Cristo, diz: Foi feito o primeiro homem Adão em alma vivente, o último Adão em espírito vivificante. Ora, a vivificação de Cristo vem da graça. Logo, é próprio de Cristo ter sido feito em graça.

2. Demais. – Agostinho diz, que Adão não leve o Espirito Santo. Ora, quem tem a graça tem o Espírito Santo. Logo, Adão não foi criado em graça.

3. Demais. – Agostinho diz: Deus ordenou a vida dos anjos e a dos homens de modo que, nela, primeiro mostrasse o poder do livre arbítrio deles; em seguida, o poder do beneficio da sua graça e o juízo da justiça. Portanto, primeiro fez o homem e o anjo só com a liberdade do arbítrio natural; e depois conferiu–lhes a graça.

4. Demais. – O Mestre das Sentenças diz: Ao homem, na criação lhe foi dado auxilio com o qual podia subsistir, mas não progredir. Ora, quem tem a graça pode progredir, pelo mérito. Logo, o primeiro homem não foi criado em graça.

5. Demais. – Para receber a graça é necessário o consentimento da parte de quem recebe; pois assim se consuma um como matrimônio espiritual entre Deus e a alma. Ora, consentimento para a graça não pode haver senão da parte de quem anteriormente já existia. Logo, o homem não recebeu a graça no primeiro instante da sua criação.

6. Demais. – Mais dista a natureza, da graça, do que esta, da glória, que não é senão a graça consumada. Ora, no homem, a graça precedeu à glória. Logo, com muito maior razão, a natureza precedeu a graça. Mas, em contrário. – O homem e o anjo ordenam–se igualmente para a graça. Ora, este foi criado em graça, pois, Agostinho diz: Deus estava simultaneamente neles, criando a natureza e distribuindo a graça. Logo, também o homem foi criado em graça.

SOLUÇÃO. – Alguns dizem que o primeiro homem não foi criado em graça, contudo esta lhe foi depois conferida antes que pecasse. E na verdade, muitas autoridades dos Santos atestam que o homem, no estado de inocência, tinha a graça. – Mas, como outros dizem, ele foi criado em graça; e para isto é necessário admitir a retidão mesma do primeiro estado, na qual Deus fez o homem, conforme a Escritura: Deus criou o homem reto. E tal retidão consistia em que a razão era sujeita a Deus; à razão, as virtudes inferiores; e à alma, o corpo. Ora, a primeira sujeição era a causa da segunda e da terceira. Pois, enquanto a razão permanecia sujeita a Deus, as virtudes inferiores eram–lhe sujeitas a ela, como diz Agostinho. Ora, é manifesto que tal sujeição do corpo à alma e a das virtudes inferiores à razão, não era natural, porque do contrário permaneceriam depois do pecado; pois, nos demônios, os dons naturais permaneceram depois do pecado como diz Dionísio. Por onde é manifesto, que também aquela primeira sujeição pela qual a razão se submetia a Deus, não era só natural, mas em virtude do dom natural da graça; pois o efeito não pode ser superior à causa. Por isso, Agostinho diz: imediatamente depois que transgrediram o preceito, abandonados da graça divina ficaram confusos com a nudez dos seus corpos; pois, sentiram o movimento novo da desobediência da carne, como pena reciproca da própria desobediência. Por onde se da a entender, que se, com o abandono da graça, dissipou–se a obediência da carne em relação à alma, pela graça, existente na alma é que as virtudes inferiores lhe estavam sujeitas.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Com as palavras aduzidas, o Apóstolo quer mostrar que há um corpo espiritual, se há um corpo animal; pois a vida daquele começou com Cristo, primogênito dentre os mortos, como a vida deste começou com Adão. Mas nas palavras do Apóstolo não esta que Adão não tinha alma espiritual, senão que não foi espiritual quanto ao corpo.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Como se diz no mesmo passo, não se nega que de algum modo o Espírito Santo estivesse em Adão, como esta nos outros justos; mas que não estava nele como agora está nos fiéis, admitidos a entrarem na herança eterna logo depois da morte.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Do passo citado de Agostinho não se conclui que o anjo ou o homem fossem criados com a natural liberdade do arbítrio, antes de terem a graça. Mas mostra primeiro o que neles podia o livre arbítrio, antes da confirmação; e o que, depois, conseguiram com o auxílio da graça confirmante.

RESPOSTA À QUARTA. – O Mestre se exprime de acordo com a opinião dos que admitiam que o homem não foi criado em graça, mas somente com faculdades naturais. – Ou pode–se dizer que, embora o homem fosse criado em graça, todavia foi–lhe concedido, por criação da natureza, que pudesse progredir pelo mérito, mas em virtude de graça super–adveniente.

RESPOSTA À QUINTA. – Não sendo contínuo o movimento da vontade, nada impedia que, mesmo no primeiro instante da sua criação o primeiro homem consentisse na graça.

RESPOSTA À SEXTA. – Merecemos a glória por ato da graça; não porém a graça por ato da natureza. Por onde, a razão da comparação não e a mesma.

Art. 2 — Se o primeiro homem tinha paixões da alma.

O segundo discute–se assim. – Parece que o primeiro homem não tinha paixões da alma.

1. – Pois, por tais paixões é que a carne deseja contra o espírito, Ora, isso não se dava no estado de inocência. Logo, nesse estado não havia paixões da alma.

2. Demais. – A alma de Adão era mais nobre que o corpo. Ora, o seu corpo era impassível. Logo, também na alma de Adão não havia paixões.

3. Demais. – Pela virtude moral se refreiam as paixões da alma. Ora, em Adão havia virtude moral perfeita. Logo, dele estavam totalmente excluídas as paixões. Mas, em contrário, diz Agostinho: havia neles o amor imperturbado de Deus, e algumas outras paixões da alma.

SOLUÇÃO. – As paixões da alma estão no apetite sensível, cujos objetos são o bem e o mal. Por onde, dessas paixões, umas se ordenam ao bem, como o amor e a alegria; outras, ao mal, como o temor e a dor. Ora, no primeiro estado não havia nenhum mal existente nem iminente; nem faltava nenhum bem dos que a vontade, nesse tempo, quisesse ter, como se vê claramente em Agostinho. Por onde, todas as paixões, que dizem respeito ao mal, como o temor, a dor e outras, não existiam em Adão; semelhantemente, nem as que dizem respeito ao bem não alcançado e atualmente desejado, como a cobiça estuante. Porém, existiam no estado de inocência as paixões referentes ao bem presente, como a alegria e o amor; ou as referentes a um bem futuro, a obter em tempo devido, como o desejo e a esperança sem aflições. Mas de modo diferente do pelo que existem em nós. Pois em nós o apetite sensível, onde se radicam as paixões, não se sujeita totalmente à razão; e por isso as nossas paixões previnem, umas vezes, e impedem o juízo da razão e, outras vezes, resultam desse juízo quando o apetite sensível obedece de algum modo à razão. Ao passo que, no estado de inocência, o apetite inferior, estando totalmente sujeito à razão, não havia nele, das paixões da alma, senão as resultantes do juízo da mesma.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A carne deseja contra o espírito, porque as paixões repugnam à razão; ora tal não se dava no estado de inocência.

RESPOSTA À SEGUNDA. – O corpo humano no estado de inocência era impassível, quanto às paixões que removem a disposição natural, como a seguir se dirá. E semelhantemente, a alma era impassível, quanto às paixões que travam a razão.

RESPOSTA À TERCEIRA. A virtude moral perfeita não elimina totalmente as paixões, mas as ordena; pois, como diz Aristóteles, é próprio do homem sóbrio desejar como deve e o que deve.

Art. 3 — Se Adão tinha todas as virtudes.

O terceiro discute–se assim. – Parece que Adão não tinha todas as virtudes.

1. – Pois, certas virtudes visam refreiar a imoderação das paixões; assim, a temperança refreia a concupiscência imoderada; e a fortaleza, o temor imoderado. Ora, não havia imoderação das paixões no estado de inocência. Logo, nem as sobreditas virtudes.

2. Demais. – Certas virtudes dizem respeito às más paixões; assim, a mansidão, refreia a ira e a fortaleza, o temor. Ora, como já se disse, tais paixões não existiam no estado de inocência. Logo, nem as sobreditas virtudes.

3. Demais. – A penitência é virtude atinente ao pecado anteriormente cometido. De seu lado, a misericórdia é virtude que diz respeito à miséria. Ora, no estado de inocência não havia pecado nem miséria. Logo, nem tais virtudes.

4. Demais. – A perseverança é uma virtude. Ora, Adão não a teve, como bem o mostra o pecado subsequente. Logo, não teve todas as virtudes.

5. Demais. – A fé é uma virtude. Ora, ela não existia no estado de inocência; pois, importa um conhecimento velado, que repugna à perfeição do primeiro estado. Mas, em contrário, diz Agostinho: O príncipe dos vícios venceu Adão, feito do limo da terra à imagem de Deus, armado de pudicícia, formado na temperança, magnífico pelo esplendor.

SOLUÇÃO. – O homem, no estado de inocência, teve, de certo modo, todas as virtudes; o que pode se tornar manifesto pelo que já ficou dito. Pois, como já se disse antes, era tal a retidão do primeiro estado, que a razão era submissa a Deus, e as virtudes inferiores, à razão. Ora, estas nada mais são que certas perfeições, pelas quais a razão se ordena para Deus; e as virtudes inferiores dispõem–se pela regra da razão, como se verá mais claramente quando se tratar das virtudes. Por onde, a retidão do primeiro estado exigia que o homem tivesse, de certo modo, todas as virtudes. Mas devemos considerar que há certas virtudes, como a caridade e a justiça que, por essência, não importam nenhuma imperfeição. E tais virtudes existiam, no estado de inocência, em si mesmas, habitual e atualmente. Há outras virtudes, porém, que, por essência, importam a imperfeição, ou quanto ao ato, ou quanto à matéria. E se tal imperfeição não repugna à perfeição do primeiro estado, então tais virtudes podiam existir nesse estado. Assim a fé, referente às coisas que se não vêm; e a esperança, às que não se tem. Pois, a perfeição do primeiro estado não chegava até à visão de Deus em essência e à posse dele com o gozo da beatitude final. Por onde, a fé e a esperança podiam existir, no primeiro estado, tanto habitual como atualmente. Se porém a imperfeição, da essência de uma determinada virtude repugna à perfeição do primeiro estado, então essa virtude podia nele existir, habitual, mas não atualmente. Como claramente se vê na penitência, que é a dor pelo pecado cometido; e na misericórdia, que é a dor pela miséria alheia. Pois, à perfeição do primeiro estado tanto repugna a dor como a culpa e a miséria. Por onde, tais virtudes existiam, no primeiro homem, habitual mas não atualmente. Pois, era o primeiro homem de tal modo disposto que, se precedesse o pecado, condoer–se–ia; e, semelhantemente, se visse a miséria alheia, socorrer–lhe–ia tanto quanto pudesse. E por isso o Filósofo diz: a vergonha, que se refere a um fato torpe, existe no virtuoso só condicionalmente; pois ele é de tal modo disposto que haveria de se envergonhar, se cometesse algo de torpe.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A temperança e a fortaleza constituem a super abundância das paixões, só acidentalmente, enquanto encontram paixões super abundantes no sujeito. Mas por natureza é próprio dessas virtudes, moderar as paixões.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Repugnam à perfeição do primeiro estado as paixões ordenadas ao mal, que dizem respeito a este enquanto existente em quem é afetado pela paixão, como o temor e a dor. Mas as paixões referentes ao mal, em outrem, não repugnam à perfeição do primeiro estado. Pois nesse estado o homem podia odiar a malícia dos demônios, bem como amar a bondade de Deus. E por isso as virtudes referentes a tais paixões podiam existir no sobredito estado, habitual e atualmente. As que são, porém referentes às paixões, que dizem respeito ao mal no mesmo sujeito, se se referirem só a tais paixões, não podiam ter existido atualmente no primeiro estado, mas só habitualmente, como já se disse no tocante à penitência e à misericórdia. Há porém certas virtudes referentes não só a essas, como às outras paixões; assim, a temperança, referente não só às dores, mas também aos prazeres; e a fortaleza, referente não só ao temor, como também à audácia e à esperança. Por onde, podia haver, no primeiro estado, o ato da temperança, enquanto moderador dos prazeres; e, semelhantemente, a fortaleza, enquanto moderadora da audácia ou da esperança. Não, porém enquanto moderam a tristeza e o temor.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Deduz–se clara a resposta, do que foi dito.

RESPOSTA À QUARTA. – Em dupla acepção se entende a perseverança. – Como virtude e exprimindo um hábito, pelo qual alguém elege o perseverar no bem; nesse sentido Adão teve a perseverança. – Ou, noutra acepção, como circunstância da virtude, e exprimindo uma certa continuação da virtude, sem corrupção; e nesse, Adão não a teve.

RESPOSTA À QUINTA. – Deduz–se clara a resposta, daquilo que acaba de ser dito.

Art. 4 — Se as obras do primeiro homem eram menos eficazes para merecer, que as nossas.

O quarto discute–se assim. – Parece que as obras do primeiro homem eram menos eficazes para merecer, que as nossas.

1. – Pois, a graça é dada pela misericórdia de Deus, que mais socorre aos mais indigentes. Ora, nós precisamos mais da graça, do que o primeiro homem, no estado de inocência. Logo, ela nos é infundida mais copiosamente; e, sendo ela a raiz do mérito, as nossas obras tornam–se mais eficazes para merecer.

2. Demais. – O mérito supõe necessariamente a luta e a dificuldade, conforme a Escritura : Não é coroado senão depois que combateu conforme a Lei. E o Filósofo diz: a virtude implica o bem difícil. Ora, na vida presente maior é a luta e a dificuldade. Logo, também maior é a eficácia para merecer.

3. Demais. – O Mestre das Sentenças diz: o homem, então não mereceria, resistindo à tentação; agora, porém merece quem a ela resiste. Logo, mais eficazes são as nossas obras para merecer, do que no estado primitivo.. Mas, em contrário, neste caso, o homem estaria em melhor condição, depois do pecado.

SOLUÇÃO. – O grau do mérito pode ser avaliado de dois modos. – Primeiro, pelo radicar–se na caridade e na graça. E tal grau corresponde ao prémio essencial, consistente na fruição de Deus; assim, quem proceder com maior caridade mais perfeitamente gozará de Deus. – De outro modo, pode–se avaliar o grau do mérito pelo grau da obra. E este é duplo: absoluto e proporcional. Assim a viúva, que colocou duas pequenas moedas no gazofilácio, fez obra menor, absolutamente falando que aqueles que fizeram grandes dádivas; mas, pela quantidade proporcional, fez mais, conforme o julgamento do Senhor, porque a sua dádiva, ia mais além das suas posses. Um e outro grau do mérito porém corresponde ao prêmio acidental, que é o gozo do bem criado. Portanto devemos concluir que as obras do homem eram mais eficazes para merecer, no estado de inocência, do que depois do pecado, se se atender ao grau do mérito, relativamente à graça, mais copiosa então, por não encontrar nenhum obstáculo da parte da natureza humana. Semelhantemente, se se considerar o grau absoluto da obra; pois, como o homem tinha maior virtude suas obras eram mais meritórias. Mas se se considerar a quantidade proporcional, maior é o grau do mérito depois do pecado, por causa da fraqueza do homem; pois, uma obra de pequena monta excede mais o poder daquele, que a faz com dificuldade, do que uma obra de grande valia, o poder de quem a faz sem dificuldade.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O homem, depois do pecado, precisa da graça para maior número de obras do que antes dele, mas não de mais graças. Pois, antes do pecado precisava da graça, e era essa a necessidade principal dela, para alcançar a vida eterna. Mas depois, precisa da graça também para remissão do pecado e sustentáculo da fraqueza.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A dificuldade e a luta respeitam ao grau do mérito, quanto à quantidade proporcional da obra, conforme já se disse. E é sinal da presteza da vontade, que se esforça por alcançar aquilo que lhe é difícil. Ora, essa presteza é causada pela magnitude da caridade. Assim, pode dar–se que faça um qualquer obra fácil, com vontade tão pronta, como outro, uma difícil; porque está preparado para fazer também o que lhe fosse difícil. Porém a dificuldade atual, como pena, acarreta também o ser satisfatória pelo pecado.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Resistir à tentação não era meritório, para o primeiro homem, na opinião dos que dizem que ele não tinha a graça; assim como, ainda agora, não o é para quem não a tem. Mas há diferença no seguinte, que, no primeiro estado, nada, interiormente, impelia ao mal, como agora. Por onde, então, o homem podia resistir á tentação, sem a graça, mais que agora.