Em seguida devemos tratar, primeiro do temor; e segundo, da audácia. Sobre o temor há quatro questões a tratar. Primeiro, do temor em si mesmo. Segundo, do seu objeto. Terceiro, da sua causa, Quarto, do seu efeito. Sobre a primeira questão discutem-se quatro artigos:
O primeiro discute-se assim. — Parece que o temor não é paixão da alma.
1. — Pois, como diz Damasceno, o temor é uma virtude que supõe a sístole, i. é, a contração, e é desiderativa da essência. Ora, nenhuma virtude é paixão, conforme Aristóteles o prova. Logo, o temor não é paixão.
2. Demais — Toda paixão é efeito de uma presença proveniente do agente. Ora, o temor não se refere a nada de presente, mas sim, ao futuro, como diz Damasceno. Logo, o temor não é paixão.
3. Demais — Toda paixão da alma é um movimento do apetite sensitivo, consecutivo à apreensão do sentido. Ora, o sentido não apreende o futuro, mas, sim, o presente. E o temor, referindo-se a um mal futuro, não pode ser paixão da alma. Mas, em contrário, Agostinho enumera o temor entre as outras paixões da alma.
SOLUÇÃO. — Entre os outros movimentos da alma, o temor é, depois da tristeza, o que principalmente implica a noção de paixão. Pois, como já dissemos, ao conceito de paixão pertence: — primeiro, ser um movimento da virtude passiva, para o qual o seu objeto está como um motor ativo, pois, a paixão é um efeito do agente. E deste modo também consideramos paixões o sentir e o inteligir. — Segundo e mais propriamente, chama-se paixão o movimento da virtude apetitiva. — E, ainda mais propriamente, o movimento da virtude apetitiva servida por um órgão corpóreo, acompanhado de certa transmutação corpórea. — E enfim, propríssimamente, chamam-se paixões os movimentos que acarretam alguma nocividade. Ora, é manifesto que o temor, sendo relativo ao mal, pertence à potência apetitiva que, em si mesma, respeita o bem e o mal. Pertence ao apetite sensitivo, por ser acompanhado de certa transmutação, que é a contração, como diz Damasceno. E implica além disso relação com o mal, enquanto este pode de algum modo, levar-nos de vencida. Por onde, mui verdadeiramente lhe cabe a natureza de paixão; vem contudo depois da tristeza, relativa ao mal presente, porque o temor é relativo ao mal futuro, que não move como o presente.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Virtude designa um certo princípio de ação; por isto, na medida em que os movimentos interiores da potência apetitiva são princípios de atos exteriores, chamam-se virtudes. O Filósofo porém nega seja a paixão uma virtude, pois, a virtude é um hábito.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Assim como a paixão do corpo natural provém da presença corpórea do agente, assim a da alma, da presença animal do agente, sem presença corporal ou real; e isso se dá quando o mal, realmente futuro, se torna presente pela apreensão da alma.
RESPOSTA À TERCEIRA. — O sentido não apreende o futuro; mas, apreendendo o presente, o animal é movido, por um instinto natural, a esperar um bem futuro ou a temer um futuro mal.
O segundo discute-se assim. — Parece que o temor não é uma paixão especial.
1. — Pois, diz Agostinho: a quem o medo não desanima, nem a cobiça perturba, nem a agrura, i. é, a tristezamacera, nem a agita a alvoroçada e vã alegria. Por onde se vê que, removido o temor, removidas ficam todas as demais paixões. Logo, não é uma paixão especial, mas, geral.
2. Demais — O Filósofo diz, que a busca e a aversão desempenham, no apetite, o mesmo papel que, no intelecto, a afirmação e a negação. Ora, a negação e a afirmação não são atividades especiais do intelecto, mas podem se referir a muitas coisas. Logo, o mesmo se dá com a aversão, no apetite. Ora, o temor não é senão um afastamento do mal. Logo, não é uma paixão especial.
3. Demais — Se o temor fosse uma paixão especial, teria a sua sede principalmente no irascível. Ora, ele também existe no concupiscível. Pois, como diz o Filósofo, o temor é uma tristeza; e Damasceno afirma, que o temor é uma virtude desiderativa. Ora, a tristeza e o desejo existem no concupiscível, como já dissemos. Logo, não é uma paixão especial, desde que pertence a diversas potências. Mas, em contrário, o temor entra na divisão geral das paixões, como se vê em Damasceno.
SOLUÇÃO. — As paixões da alma se especificam pelos seus objetos. E portanto, paixão especial é a que tem um objeto especial. Ora, tanto o temor como a esperança estão nestas condições. Pois, assim como o objeto desta é o bem futuro árduo e possível de ser alcançado, assim, o daquele é o mal futuro difícil a que não podemos resistir. Logo, o temor é uma paixão especial da alma.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Todas as paixões da alma são derivadas de um mesmo princípio, que é o amor, no qual têm conexão mútua. E é em virtude desta conexão, e não por ser o temor uma paixão geral, que removido ele, removidas ficam todas as outras paixões.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Nem toda aversão do apetite é temor, mas, a de um objeto especial, como já dissemos. E portanto, embora a aversão seja algo de geral, contudo o temor é uma paixão especial.
RESPOSTA À TERCEIRA. — O temor de nenhum modo existe no concupiscível, pois não diz respeito ao mal absolutamente considerado, mas ao que é acompanhado de uma certa dificuldade ou arduidade, de modo que quase se lhe não possa resistir. Mas como as paixões do irascível derivam das do concupiscível e nelas terminam, como já dissemos, ao temor se atribui o que é próprio ao concupiscível. Assim, chamamos ao temor tristeza porque o seu objeto, quando presente, contrista; e por isso, o Filósofo diz, no mesmo passo, que o temor procede da imaginação do mal futuro corruptor ou que contrista. Semelhantemente, Damasceno atribui o desejo ao temor porque, assim como a esperança é causada ou nasce do desejo do bem, assim, o temor é a fuga do mal, pois, tal fuga nasce do desejo do bem, como do sobredito claramente resulta.
O terceiro discute-se assim. — Parece que há um temor natural.
1. — Pois, diz Damasceno: a alma tem o temor natural de ser, contra a sua vontade, separada do corpo.
2. Demais — O temor nasce do amor, como já se disse. Ora, há um amor natural, segundo Dionísio. Logo, há também um temor natural.
3. Demais — O temor se opõe à esperança, como já se disse. Ora, há uma esperança da natureza, como se vê claramente na Escritura (Rm 4, 18), onde se diz que Abraão, contra a esperança da natureza acreditou naesperança da graça. Logo, há também um temor da natureza. Mas, em contrário. — O que é natural encontra-se comumente nos seres animados e nos inanimados. Ora, nestes não há temor. Logo, o temor não é natural.
SOLUÇÃO. — Chama-se natural o movimento para o qual a natureza inclina; o que de dois modos pode dar-se. — De um modo porque o todo se aperfeiçoa pela natureza, sem nenhuma operação da potência apreensiva; assim, mover-se para cima é o movimento natural ao fogo como crescer o é aos animais e às plantas. — De outro modo, natural é o movimento para o qual a natureza inclina, embora se complete só pela apreensão; pois, como já dissemos, o movimento das potências cognitiva e apetitiva reduzem-se à natureza como ao primeiro princípio. E deste modo também os atos mesmos da potência apreensiva, como o inteligir, o sentir e o lembrar-se se chamam naturais, bem como o movimento do apetite animal. E deste modo podemos dizer que o temor é natural, e distingue-se do não-natural, pela diversidade do objeto. Pois, o temor, segundo o Filósofo, é relativo ao mal que corrompe e do qual a natureza foge, por causa do seu desejo natural de existir; donde vem o dizermos que esse temor é natural. E além disso, o temor é relativo ao mal que contrista, que não repugna à natureza, mas ao desejo do apetite; e tal temor não é natural. Pois, como já dissemos, a distinção entre o amor de concupiscência e o prazer se fundam no que é natural e no que não o é. Porém, segundo a primeira acepção da palavra natural é mister saber-se que certas paixões da alma, como o amor, o desejo e a esperança, se chamam às vezes naturais; outras porém não podem se chamar assim. E isto porque o amor e o ódio, o desejo e a aversão implicam uma certa inclinação para buscar o bem e fugir do mal, inclinação essa que também pertence ao apetite natural. Por onde, há um certo amor natural; e podemos dizer que o desejo ou a esperança existe de certo modo também nos seres naturais privados de conhecimento. As outras paixões da alma, porém, implicam certos movimentos para os quais não basta, de nenhum modo, a inclinação natural. Ou porque essas paixões implicam o sentido ou conhecimento; e, assim, como já dissemos, a apreensão sendo necessária para haver prazer e dor, não podemos dizer que os seres privados de conhecimento se deleitam ou sofram dor. Ou porque tais movimentos são contrários à essência da inclinação natural; assim é que a desesperança foge do bem, por causa de alguma dificuldade; e o temor, seguindo nisso a inclinação natural evita atacar o mal contrário, o natural. Por onde, tais paixões não se atribuem de nenhum modo aos inanimados. E daqui se deduzem claras AS RESPOSTAS ÀS OBJEÇÕES.
O quarto discute-se assim. — Parece que Damasceno assinala inconvenientemente seis espécies de temor, a saber: a indolência, o pejo, a vergonha, a admiração, o estupor e a agonia.
1. — Pois, como diz o Filósofo, o temor é relativo ao mal que contrista. Logo, as espécies do temor devem corresponder às da tristeza. Ora, há quatro espécies de tristezas. Logo, deve haver só quatro espécies de temor, que lhes correspondam.
2. Demais — O que consiste num ato nosso depende do nosso poder. Ora, o temor é relativo ao mal que sobrepuja o nosso poder, como já dissemos. Logo, a indolência, o pejo e a vergonha, que respeitam a nossa operação, não devem ser considerados espécies do temor.
3. Demais — O temor é relativo ao futuro, como já se disse. Ora, a vergonha é relativa a um ato torpe cometido, como diz Gregório Nisseno (Nemésio). Logo, a vergonha não é uma espécie de temor.
4. Demais — Só há temor do mal. Ora, a admiração e o estupor são relativos ao que é grande e insólito, seja bem, seja mal. Logo, a admiração e o estupor não são espécie do temor.
5. Demais — Pela admiração os Filósofos são levados a inquirir a verdade, como diz Aristóteles. Ora, o temor não leva a inquirir, mas antes a fugir. Logo, não é a admiração uma espécie de temor. Mas, em contrário, basta a autoridade de Damasceno e de Gregório Nisseno (Nemésio).
SOLUÇÃO. — Como já dissemos, o temor é provocado pelo mal futuro, que nos sobrepuja o poder, de modo que lhe não podemos resistir. Ora, como o bem, também o mal do homem pode ser considerado quanto à sua operação ou quanto às coisas externas. Quanto à sua operação o homem pode temer um duplo mal. — O primeiro é o trabalho, que causa gravame à natureza; e, daí a indolência, consistente em evitar a atividade por temor do trabalho sobreexcedente. — O segundo é a torpeza, que provoca a má opinião dos outros. E assim se chama pejo à torpeza temida na comissão do ato, e vergonha quando se trata do ato torpe já cometido. Por outro lado, o mal consistente nas coisas exteriores pode exceder, de três modos, a faculdade de resistência do homem. — Primeiro, em razão da sua grandeza, como quando nos achamos em face de um mal tão grande que não lhe podemos calcular as conseqüências. E nisto consiste a admiração. — Segundo, em razão do seu caráter insólito, i. é, quando um mal insólito se nos oferece à consideração e, por isso mesmo, nos parece grande. E nisso consiste o estupor, causado por uma imaginação insólita. — Terceiro, em razão da improvisação, i. é, quando o mal não pôde ser previsto; assim tememos os infortúnios futuros. E tal temor se chama agonia.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — As espécies de tristeza supra enumeradas não são relativas à diversidade de objeto, mas, aos efeitos e a certas razões especiais. Por onde, não é necessário que tais espécies correspondam às espécies do temor ora em questão, que são consideradas relativamente à divisão própria do objeto do temor.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A ação já realizada depende do poder de quem a praticou. Mas podemos considerar algo de relativo à ação que, sobrepujando a faculdade de quem age, leva-o a desistir da ação. E neste sentido a indolência, o pejo e a vergonha se consideram espécies do temor.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Do ato pretérito podemos temer o convício ou o opróbrio futuro. E deste modo a vergonha é uma espécie de temor.
RESPOSTA À QUARTA. — Nem toda admiração e nem todo estupor são espécies de temor; mas a admiração provocada por um grande mal e o estupor causado por um mal insólito. — Ou podemos dizer que, assim como a indolência evita o trabalho da ação exterior, assim a admiração e o estupor evitam a dificuldade de encarar o que é grande e insólito, quer seja bom quer mau; por onde, deste modo, a admiração e o estupor estão para o ato do intelecto, como a indolência, para o ato exterior.
RESPOSTA À QUINTA. — Quem admira evita julgar atualmente o que admira, temendo fazê-lo deficientemente; mas inquire, no futuro. Ao passo que quem é tomado de estupor tanto teme julgar atual como futuramente. Por isso, a admiração é o princípio da reflexão filosófica, da qual, ao contrário, o estupor é um impedimento.