Suma Teológica

Summa Theologiae Quaestiones

Questões

Quaestiones
prima pars secundae Q.8 →

Dos atos em que há vontade.

Em seguida devemos tratar dos atos mesmos da vontade, em especial. E primeiro, dos atos precedentes da vontade, em si, como elícitos dela. Segundo, dos atos imperados pela vontade. Mas, como a vontade se move para o fim e para os meios, há-se de tratar, primeiro, dos atos pelos quais a vontade se move para o fim; e em seguida, dos atos pelos quais se move para os meios. Ora, os atos da vontade para o fim são três: querer, fruir e intender. Por onde, trataremos, primeiro, da vontade. Segundo, da fruição. Terceiro, da intenção. Sobre o primeiro ponto, três questões se consideram. A primeira, em que atos há vontade. A segunda é pelo que ela é movida. A terceira, como é movida. Sobre a primeira Questão três artigos se discutem:

Art. 1 — Se a vontade quer só o bem.

(I, q. 19, a . 9; IV Sent., dist. XLIX, q. 1, a . 3, q ª 1; De Verit., q. 22, a . 6). O primeiro discute-se assim. ― Parece que a vontade não quer só o bem.

1. ― Pois, uma mesma é a potência dos contrários; assim, a vista vê o branco e o negro. Ora, o bom e o mal são contrários. Logo, a vontade quer não só o bem, mas ainda o mal.

2. Demais. ― As potências racionais buscam os contrários, segundo o Filósofo. Ora, a vontade é potência racional, pois, reside na razão, como diz Aristóteles. Logo, a vontade busca os contrários e, portanto, quer, não só o bem, mas ainda o mal.

3. Demais. ― O bem e o ser se convertem entre si. Ora, a vontade quer, não só o ser, mas também o não-ser; assim, queremos, umas vezes, não andar e não falar; e também queremos, outras, certos futuros, que não são realidades atuais. Logo, a vontade não quer só o bem. Mas, em contrário, diz Dionísio: o mal é contrário à vontade, e: todos os seres apetecem o bem.

SOLUÇÃO. ― A vontade é um apetite racional. Ora, todo apetite só pode desejar o bem; pois, o apetite não é mais do que uma inclinação do apetente para alguma coisa; e nada se inclina senão para o que lhe é semelhante e conveniente. Por onde, tudo o que existe sendo, enquanto ente e substância, um certo bem, necessário é que toda inclinação seja para um bem. E daí procede o dito do Filósofo: bem é o que todos os seres desejam. Deve-se porém considerar que, como toda inclinação resulta de alguma forma, o apetite natural resulta de forma existente em a natureza; ao passo que o apetite sensitivo ou também o intelectivo ou racional, chamado vontade, resulta de forma apreendida. Assim como, pois, o para que tende o apetite natural é o bem existente na realidade, assim, o para que tende o apetite animal, ou voluntário, é o bem apreendido. Portanto, para a vontade tender para alguma coisa, não é necessário que exista o bem, na realidade, mas que algo seja apreendido sob a idéia de bem. E por isso diz o Filósofo: o fim é o bem ou o que parece tal.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Embora a potência dos contrários seja a mesma, contudo ela não se comporta com ambos, do mesmo modo. Assim, a vontade tende para o bem e para o mal; mas para aquele, apetecendo-o; para este, fugindo. E por isso o apetite atual do bem se chama vontade, designando esta um ato de vontade; e é neste sentido que estamos agora tratando da vontade. Ao passo que à fuga do mal se chama antes negação da vontade (noluntas). Por onde, assim como a vontade quer o bem, assim a sua negação foge do mal.

RESPOSTA À SEGUNDA. ― A potência racional não busca quaisquer contrários, mas só os que se contêm no seu objeto conveniente; pois nenhuma potência busca senão o objeto que lhe convém. Ora, o objeto da vontade é o bem, e por isso ela busca só os contrários compreendidos no bem; assim, o ser movido e o repousar, o falar e o calar e outros semelhantes, para os quais a vontade é levada pela idéia de bem.

RESPOSTA À TERCEIRA. ― O que não é ser real, é considerado ser de razão; por isso, as negações e as privações consideram-se seres de razão. E desse mesmo modo os futuros, enquanto apreendidos, são entes e, como tais, apreendidos sob a idéia de bem, a vontade tende para eles. Donde o dito do Filósofo: não ter mal se compreende na idéia de bem.

Art. 2 — Se a vontade quer também os meios ou só o fim.

(I Sent., dist. XLV, a. 2, ad 1; II dist. XXIV, q. 1a a. a . 3, ad 3; De Verit., q. 22, a . 13, ad 9). O segundo discute-se assim. ― Parece que a vontade não quer os meios, mas só fim.

1. — Pois, diz o Filósofo: a vontade quer o fim; a eleição, porém, os meios.

2. Demais. ― A coisas genericamente diversas ordenam-se potências diversas da alma, como diz Aristóteles. Ora, o fim e os meios pertencem a gêneros diversos do bem; pois, o fim que é o bem honesto ou deleitável pertence ao gênero da qualidade, da ação ou da paixão; ao passo que o bem chamado útil, que existe para o fim, é relativo a alguma coisa, como diz Aristóteles. Logo, se vontade só quer o fim, não pode querer os meios.

3. Demais. ― Os hábitos, sendo perfeições das potências, a elas se proporcionam. Ora, dos hábitos chamados artes operativas, uns visam o fim, outros, o meio. Assim, à arte de pilotar cabe o uso do navio, que é o fim deste; à fazer navios porém, a construção da nau, que é meio, para um fim. Logo, querendo o fim, a vontade não quer os meios. Mas, em contrário, nas coisas naturais, pela mesma potência são percorridos os meios e é alcançado o termo. Ora, o que diz respeito ao fim, são meios, pelos quais se chega aquele, como termo. Logo, se a vontade quer o fim há de também querer os meios.

SOLUÇÃO. ― Vontade significa, ora, a potência mesma pela qual queremos; ora, o ato mesmo de vontade. Se, pois, tratamos da vontade enquanto potência, ela se estende tanto ao fim como aos meios. Ora, cada potência se estende a tudo o em que pode existir, de qualquer modo, por natureza o seu objeto; assim, a vista se estende a tudo o que participa de algum modo da cor. Ora, a idéia de bem, objeto da potência da vontade, encontra-se não só no fim mas também nos meios. Se porém tratamos da vontade, enquanto ato, então propriamente falando ela só quer o fim. Pois todo ato, que tira da potência a sua denominação, designa um ato simples dessa potência, assim, inteligir designa um ato simples do intelecto. Ora, o ato simples de uma potência recai sobre o objeto em si da potência. Ora, o que é, em si mesmo, bem e querido é o fim. Logo, a vontade propriamente quer o fim em si; ao passo que os meios não são bens e nem são queridos, em si mesmos, mas em ordem ao fim. E por isso a vontade não os quer senão na medida em que quer o fim; portanto este é o que neles ela quer. Assim, inteligir, propriamente, se refere ao que é conhecido, em si, i. é, os princípios; enquanto que do conhecido por meio dos princípios não se diz que há inteligência, senão na medida em que nisso os princípios mesmos são considerados. Assim, pois, o fim está para os apetíveis, como o princípio, para os inteligíveis, segundo Aristóteles.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O Filósofo se refere à vontade, enquanto ela designa propriamente um ato simples seu; não porém como designando uma potência.

RESPOSTA À SEGUNDA. ― Coisas genericamente diversas e igualmente independentes, entre si, ordenam-se a potências diversas; assim, ao som e à cor, gêneros diversos de sensíveis, ordena-se à audição e a visão. Ora, o honesto e o útil não são igualmente independentes, entre si; mas estão um para o outro, como o que existe para si e o que existe para outro. E por isso ambos sempre se referem à mesma potência, assim como, pela potência visiva sente-se à cor e a luz, pela qual aquela é vista.

RESPOSTA À TERCEIRA. ― Nem tudo o que diversifica o hábito diversifica a potência. Pois os hábitos são certas determinações das potências para alguns atos especiais. Contudo, qualquer arte operativa considera tanto o fim como o meio. P. ex., a arte de pilotar considera, de um lado, como fim, o para o que opera; e de outro, como meio, aquilo que manda. Pelo contrário, a arte de fazer navio considera como meio aquilo que opera e, como fim, aquilo ao que ordena o operado. E assim por diante: em cada arte operativa há um fim que lhe é próprio e algo que é o meio e que lhe pertence, propriamente.

Art. 3 — Se pelo mesmo ato a vontade quer o fim e o meio.

(Infra. q. 12, a . 4; De Verit., q. 22, a . 14). O terceiro discute-se assim. ― Parece que pelo mesmo ato a vontade quer o fim e o meio.

1. ― Pois, segundo o Filósofo, quando uma coisa existe para outra, só uma delas existe. Ora, a vontade não quer o meio senão para o fim. Logo, move-se para um e outro pelo mesmo ato.

2. Demais. ― O fim é a razão de se querer o meio, assim como a luz é a da visão das cores. Ora, pelo mesmo ato vê-se a luz e a cor. Logo, pelo mesmo movimento a vontade quer o fim e o meio.

3. Demais. ― É o mesmo, numericamente, o movimento natural que, pelos termos médios, tende ao que é último. Ora, os meios estão para o fim como o médio para o último. Logo, pelo mesmo ato a vontade quer o fim e os meios. Mas, em contrário. ― Os atos se diversificam pelos objetos. Ora, o fim e o meio, chamado útil, são espécies diversas de bens. Logo, não é pelo mesmo ato que a vontade os quer, a um e outro.

SOLUÇÃO. ― Sendo o fim querido por si mesmo, e sendo o meio como tal querido para o fim, é claro que a vontade pode querer aquele sem querer este. Mas pode querer os meios sem querer o fim. Assim pois, a vontade quer o fim em si mesmo, de duplo modo: absolutamente e em si e em razão de querer os meios. Ora, é claro, pelo mesmo movimento uno é que a vontade, de um lado quer o fim, sendo este a razão de querer os meios, e, de outro, quer os meios. Diverso porém é o ato pelo qual quer o fim em si, absolutamente, o que às vezes tem precedência temporal; assim, quando alguém quer primeiramente a saúde e, depois, deliberando como possa curar-se, quer que se chame o médico para curar. E o mesmo se dá com o intelecto. Pois, primeiro, inteligimos os princípios em si; depois, os inteligimos nas conclusões, enquanto damos assentimento a estas por meio daqueles.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A objeção feita colhe quando a vontade quer o fim, como razão de querer os meios.

RESPOSTA À SEGUNDA. ― Embora, sempre que vemos a cor vemos também a luz, pelo mesmo ato, contudo, podemos ver esta sem vermos aquela. ― E semelhantemente, quem quer os meios quer sempre e pelo mesmo ato o fim; não porém, inversamente.

RESPOSTA À TERCEIRA. ― Na execução da obra, os meios exercem a função de termos médios e o fim, de termo último. Donde, assim como o movimento natural para às vezes no meio e não alcança o termo, assim também às vezes realizamos o meio sem contudo conseguirmos o fim. Mas no querer se dá o inverso; pois, pelo fim, a vontade é levada a querer os meios, assim como o intelecto chega às conclusões pelos princípios, considerados meios. Donde, assim como o intelecto às vezes intelige o meio sem por ele chegar à conclusão, assim também a vontade quer às vezes, o fim sem entretanto chegar a querer o meio. E quanto ao que é objetado em contrário, a SOLUÇÃO. é clara pelo que já ficou dito antes. Pois, o útil e honesto não constituem espécies independentes um do outro, por igual; mas estão entre si como o que existe para si mesmo e o que existe para outra coisa. Donde, o ato da vontade pode querer um sem querer o outro, mas não inversamente.