Suma Teológica

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tertia pars Q.23 →

Se a adoção convém a Cristo

Em seguida devemos tratar da adoção – se ela convém a Cristo. E nesta questão discutem-se quatro artigos:

Art. 1 — Se a Deus convém adotar filhos.

O primeiro discute-se assim. — Parece que a Deus não convém adotar filhos.

1. — Pois, ninguém adota como filho senão uma pessoa estranha, conforme o ensinam os juristas. Ora, Deus, sendo criador de todas as coisas, nenhuma pessoa lhe é estranha. Logo, parece que a Deus não convém adotar.

2. Demais. — A adoção foi introduzida para suprir a falta de filiação natural. Ora, em Deus há filiação natural, como se estabeleceu. Logo, não convém a Deus adotar filhos

3. Demais. — A adoção tem por fim fazer o adotado suceder na herança do adotante. Ora, ninguém pode suceder na herança de Deus, porque este nunca morrerá. Logo, a Deus não convém adotar. Mas, em contrário, o Apóstolo: O qual nos predestinou para sermos seus filhos adotivos. Ora, a predestinação de Deus não é vã. Logo, Deus adota para si certos como filhos.

SOLUÇÃO. — Adotamos alguém como filho para, por nossa bondade, fazê-lo participar da nossa herança. Ora, a bondade de Deus é infinita, e por isso admite as suas criaturas a lhe participarem dos bens; e sobretudo as criaturas racionais, que enquanto feitas à imagem de Deus são capazes da beatitude divina. E esta consiste na fruição de Deus; pela qual também o próprio Deus é feliz e rico por si mesmo, por fruir de si mesmo. Ora, chama-se herança de alguém o que o torna rico. Por onde, por Deus na sua bondade admitir certos homens à herança da beatitude, dizemos que os adota. Mas a adoção divina tem sobre a humana a vantagem de Deus tornar o homem que adota idôneo, pelo dom da graça, a receber a herança celeste; ao contrário, o homem não torna idôneo aquele que adota, mas o escolhe para a adoção já idôneo

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O homem, considerado na sua natureza, não é estranho para que Deus, quanto aos bens naturais que recebe, mas é estranho quanto aos bens da graça e da glória; e é por causa disto que é adaptado.

RESPOSTA À SEGUNDA. — É próprio do homem agir para suprir a sua indigência; mas não, de Deus, a quem convém o obrar para comunicar a abundância da sua perfeição. Por onde, assim como, pelo ato de criação, a bondade divina é comunicada a todas as criaturas segundo uma certa semelhança, assim, pelo ato de adoção é comunicada uma semelhança de filiação natural aos homens, segundo aquilo dos Apóstolo: Os que ele conheceu na sua presciência também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Os bens espirituais podem ser possuídos simultaneamente por muitos, mas não os materiais. Por isso, ninguém pode receber uma herança material senão sucedendo ao morto; mas a herança espiritual todos a recebem simultânea e integralmente, sem detrimento do Pai sempre vivo. Embora possamos dizer que o Deus, existente em nós pela fé, morre, para começar a existir em nós, pela visão, segundo a Glosa àquilo do Apóstolo: Se filhos, também herdeiros.

Art. 2 — Se adotar convém a toda a Trindade.

O segundo discute-se assim. — Parece que adotar não convém a toda a Trindade.

1. — Pois, a adoção divina é assim chamada por semelhança com as coisas humanas Ora, na ordem humana, só podem adotar os que podem gerar filhos; o que, em Deus, só cabe ao Pai. Logo, na ordem divina só o Pai pode adotar.

2. Demais. — Os homens, pela adoção, tornam-se irmãos de Cristo, segundo aquilo do Apóstolo: Para que ele seja o primogênito de muitos irmãos. Ora, irmãos se chamam os filhos do mesmo pai, donde o dizer o Senhor: Vou para meu Pai e vosso Pai. Logo, só o Pai de Cristo tem filhos adotivos.

3. Demais. — O Apóstolo diz: Enviou Deus a seu Filho, para que recebêssemos a adoção de filhos. E porque vós sois filhos, mandou Deus aos vossos corações o Espírito de seu Filho que clama nos vossos corações Pai, Pai. Logo, é próprio adotar àquele a que o é ter o Filho e o Espírito Santo. Ora, isto só é próprio à pessoa do Pai. Logo, adotar ó convém à pessoa do Pai. Mas, em contrário. — É próprio adotar-nos como filhos àquele a quem podemos denominar pai. Donde o dizer, o Apóstolo: Recebeste a adoção de filhos, no qual clamamos — Pai, Pai. Ora, quando dizemos a Deus — Padre nosso, referimo-nos a toda a Trindade, como a ele lhe pertencem os outros nomes que lhe aplicamos relativamente à criatura, como demonstramos na Primeira Parte. Logo, adotar convém a toda a Trindade.

SOLUÇÃO. — A diferença entre o Filho adotivo e o Filho natural de Deus está em que o Filho natural de Deus é gerado e não, feito; ao passo que o. filho adotivo é feito, segundo aquilo do Evangelho: Deu-lhes ele o poder de se fazerem filhos de Deus. Mas às vezes dizemos que o filho adotivo é gerado, por ter recebido uma nova geração espiritual. que é gratuita e não, natural; donde o dizer a Escritura: De pura vontade sua é que ele nos gerou. Embora, pois, gerar. em Deus, seja próprio da pessoa do Pai, contudo produzir qualquer efeito. nas criatura é comum a toda a Trindade. por causa da unidade de natureza: porque onde há uma natureza é necessário haver uma virtude e uma operação. Donde o dizer o Senhor: Tudo o que fizer o Pai o faz também semelhantemente o Filho. Por onde, adotar os homens como filhos de Deus convém a toda a Trindade.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Todas as pessoas humanas não são numericamente da mesma natureza, para que tenham todas a mesma operação e um mesmo efeito, como acontece com Deus. E por isso, aí não há fundamento para semelhança, em ambos os casos.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Nós por adoção nos tornamos irmãos de Cristo, quase tendo o mesmo Pai que ele. O qual, contudo, de um modo, é Pai de Cristo e, de outro. nosso Pai. Por isso sinaladamente diz o Evangelho, em separado – Meu Pai, e em separado, Vosso Pai. Pois, é Pai de Cristo, naturalmente, pela geração, o que lhe é próprio a ele; mas é nosso Pai, por agir voluntariamente, o que lhe é comum a ele, ao Filho e ao Espírito Santo. Por isso não é filho de toda a Trindade, como nós.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Como dissemos, a filiação adotiva é uma certa semelhança da filiação eterna; assim como tudo o que foi feito no tempo é de certo modo semelhança das coisas abeterno existentes. Ora, o homem é assimilado ao esplendor do Filho eterno pela claridade da graça, atribuída ao Espírito Santo. Por onde, a adoção, embora comum a toda a Trindade, é contudo apropriada ao Pai como autor, ao Filho como exemplar, ao Espírito Santo como o que imprime em nós a semelhança desse exemplar.

Art. 3 — Se ser adotado é próprio da criatura racional.

O terceiro discute-se assim. — Parece que ser adaptado não é próprio da criatura racional.

1. — Pois, Deus não é chamado Pai da criatura racional senão por adoção. Pois, é também chamado Pai da criatura irracional, como quando a Escritura diz: Quem é o Pai da chuva? ou quem produziu as gotas de orvalho? Logo, ser adaptado não é próprio da criatura racional.

2. Demais. — Certos se chamam filhos de Deus por adoção Ora, o serem filhos de Deus a Escritura propriamente o atribui aos anjos, como naquele passo: Mas um certo dia como os filhos de Deus se tivessem apresentado na frente do Senhor. Logo, não é próprio da criatura racional o ser adaptado.

3. Demais. — O próprio a uma natureza convém a todos os seres que a tem; assim, a faculdade de rir convém a todos os homens. Ora, ser adaptado não convém a toda natureza racional. Logo, ser adaptado não é próprio à natureza racional. Mas, em contrário, os filhos adaptados são herdeiros de Deus, como diz o Apóstolo. Ora, tal herança convém à criatura racional. Logo, é próprio da criatura racional ser adaptada.

SOLUÇÃO. — Como dissemos, a filiação da adoção é uma certa semelhança da filiação natural. Pois, o Filho de Deus naturalmente procede do Pai, como Verbo mental, tendo unidade de existência com ele. Ora, a esse Verbo pode um ser se assemelhar, de três modos. De um modo, em razão da forma, mas não pela mente; assim, a forma exterior de uma casa construída se assemelha ao Verbo mental do artífice, pela espécie formal; mas não pela mente, porque a forma da casa, na matéria; não é inteligível, quando o era na mente do artífice. E deste modo, qualquer criatura se assimila ao Verbo eterno, por ter sido feita pelo Verbo. - De um segundo modo, uma criatura se assimila ao Verbo, não só em razão da forma, mas ainda quanto a sua mente, assim, a ciência, que nasce na mente do discípulo, se assimila ao Verbo existente na mente do Mestre. E deste modo, a criatura racional, mesmo pela sua natureza, se assemelha ao Verbo de Deus, pela unidade que tem com o Pai; resultante da graça e da caridade. Por isso o Senhor orava: Para que eles sejam um, como também nós somos um. E tal assimilação completa a ideia de adoção, pois, a seres assim assimilados é lhes devida a herança eterna. — Por onde é manifesto, que ser adotado convém só à criatura racional, mas não a todas, senão só as que tem a caridade, que está derramada em nossos corações pelo Espírito Santo, no dizer do Apóstolo. E por isso, ainda na frase do Apóstolo, o Espírito Santo se chama espírito de adoção de filhos.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Deus é chamado Pai da criatura irracional, não propriamente pela adoção, mas pela criação, participando da semelhança, no primeiro sentido.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Os anjos se chamam filhos de Deus pela filiação adotiva; não que ela lhes convenha primariamente, mas por terem sido eles os primeiros que receberam a adoção de filhos.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A adoção não é uma propriedade resultante da natureza, mas, da graça da qual a natureza racional é capaz. Por isso, não é necessário convenha a toda criatura racional. Mas sim, que toda criatura racional seja capaz da filiação adotiva.

Art. 4 — Se Cristo, enquanto homem, é filho adotivo de Deus.

O quarto discute-se assim. — Parece que Cristo, enquanto homem, é filho adotivo de Deus.

1. — Pois, diz Hilário, referindo-se a Cristo: Não perde a dignidade do poder quando adapta a humildade da carne. Logo, Cristo, enquanto homem, é filho adotivo.

2. Demais. — Agostinho diz, que Cristo é homem pela mesma graça pela qual alguém se torna Cristão em virtude da fé inicial. Ora, os outros homens são Cristãos pela graça da adoção. Logo, também Cristo é homem por adoção E portanto, é filho adotivo.

3. Demais. — Cristo, enquanto homem, é servo. Ora, é mais digno ser filho adotivo, que servo. Logo, com maior razão, Cristo, enquanto homem é filho adotivo. Mas, em contrário, diz Ambrósio: Não consideramos o filho adotivo como filho por natureza; mas dizemos filho por natureza o que verdadeiramente o é. Ora, Cristo é verdadeiro e natural Filho de Deus, segundo o Evangelho: Para que estejamos em seu verdadeiro Filho, Jesus Cristo. Logo, Cristo, enquanto homem, não é filho adotivo.

SOLUÇÃO. — A filiação propriamente convém à hipóstase ou à pessoa, mas não à natureza; por isso na Primeira Parte dissemos, que a filiação é uma propriedade pessoal. Ora, em Cristo não há outra pessoa ou hipóstase além da incriada, o que convém ser Filho por natureza. Pois, como dissemos, a filiação da adoção é uma semelhança participada da filiação natural. Ora, não dizemos que existe participativamente o que por si mesmo existe. E por isso, Cristo. que é por natureza Filho de Deus, de nenhum modo pode ser chamado filho adotivo. — Quanto aos que atribuem a Deus duas pessoas ou duas hipóstases ou dois supostos, nada racionalmente os impediria dizer que Cristo, enquanto homem, é filho adotivo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Assim como a filiação propriamente não convém à natureza, assim também não, a adoção. E por isso, é expressão imprópria dizer que foi adotada a humildade da carne; entendendo-se aí por adoção a união da natureza humana com a pessoa do Filho.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Essa semelhança de Agostinho devemos entendê-la quanto ao princípio; isto é, porque, assim como não é por méritos de sua parte que qualquer homem é Cristão, assim não foi por nenhum mérito que o homem Cristo foi Cristo. Mas esses dois casos diferem pelo termo, porque Cristo, pela graça da união, é Filho por natureza; ao passo que qualquer homem é filho adotivo pela graça habitual. Mas, a graça habitual, em Cristo, não o fez passar, de não filho, a filho adotivo; é apenas uma consequência da filiação natural, na alma de Cristo, segundo aquilo do Evangelho: Nós vimos a sua glória, como de Filho unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O ser criatura e também a servidão ou a sujeição a Deus não respeitam só à pessoa mas ainda à natureza; o que não pode dizer-se da filiação. Por isso não colhe a comparação.