Depois de termos tratado da união de Deus e do homem e do que resulta dessa união, resta tratarmos do que fez ou sofreu o Filho de Deus encarnado na natureza humana a que se uniu. Cujo tratado é quadripartido. Assim, primeiro, consideraremos o pertinente ao seu ingresso no mundo. Segundo, o pertinente ao desenrolar-se da sua vida neste mundo. Terceiro, a sua partida deste mundo. Quarto, do relativo à sua exaltação, depois desta vida. No primeiro tratado, quatro pontos devem ser considerados. Primeiro, a concepção de Cristo. Segundo, a sua natividade. Terceiro, a sua circuncisão. Quarto, o seu batismo. Sobre a sua concepção, devemos, primeiro, tratar de certos pontos relativos à conceição de sua mãe. Segundo, do modo da conceição. Terceiro, da perfeição do filho concebido. Quanto à mãe, quatro questões se oferecem ao nosso exame. Primeiro, a sua santificação. Segundo, a sua virgindade. Terceiro, os seus desposórios. Quarto, a sua anunciação. Quinto, a sua preparação para conceber. Na primeira questão discutem-se seis artigos:
O primeiro discute-se assim. — Parece que a Santa Virgem não foi santificada antes de nascer, no ventre materno. 1 — Pois, diz o Apóstolo: Não primeiro o que é espiritual, senão o que é animal, depois o que é espiritual. Ora, pela graça da santificação o homem nasce espiritualmente filho de Deus, segundo aquilo do Evangelho: Nasceram de Deus. Mas, a natividade, do ventre, é uma natividade corpórea. Logo, a Santa Virgem não foi santificada, antes de nascer do ventre materno. 2 — Demais. Agostinho diz: A santificação, que nos torna templos de Deus, só é a dos renascidos. Ora, ninguém renasce senão depois de nascer. Logo, a Santa Virgem não foi santificada, ante de nascida do ventre materno. 3 — Demais. Todo santificado pela graça é purificado do pecado original e do atual. Se, pois, a Santa Virgem foi santificada antes da natividade no ventre materno, foi então, por consequência purificada do pecado original. Ora, só o pecado original podia impedir-lhe a entrada no reino celeste. Se, portanto, tivesse morrido, então, teria transposto as portas do reino celeste. O que contudo não podia dar-se, antes da paixão de Cristo; pois, como diz o Apóstolo, temos confiança de entrar no santuário, pelo sangue de Cristo. Donde se conclui, portanto, que a Santa Virgem não foi santificada antes de nascida do ventre materno. 4 — Demais. O pecado original é o que vem de origem, assim como o pecado atual, o que pressupõe um ato. Ora, enquanto praticamos o ato de pecar não podemos ser purificados do pecado. Logo, também a Beata Virgem não podia ser purificada do pecado original, enquanto existia original e atualmente no ventre materno. Mas, em contrário, a Igreja celebra a natividade da Santa Virgem; ora, a Igreja não celebra nenhuma festa senão por algum santo. Logo, a Santa Virgem, na sua natividade mesma, não foi santa. Logo, foi santificada no ventre materno.
SOLUÇÃO. — Sobre se a Santa Virgem foi santificada no ventre materno, nada nos ensina a Escritura canônica, a qual também não faz menção da sua atividade. Mas, assim como Agostinho prova com razões que a Virgem foi assunta ao céu em corpo, o que contudo não o diz a Escritura, assim também podemos pensar racionalmente que foi santificada no ventre materno. Pois, é racional crermos, que aquela que gerou o Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade, recebeu maiores privilégios de graça que as demais mulheres. E por isso diz o Evangelho, que o Anjo lhe anunciou: Ave, cheia de graça. Pois, sabemos que a certos foi concedido esse privilégio da santificação no ventre materno; assim, a Jeremias, a quem foi dito – Antes que tu saísses da clausura do ventre materno, te santifiquei. E a João Batista, de quem foi dito. Já desde o ventre de sua mãe será cheio do Espírito Santo. Por onde e racionalmente, cremos que a Santa Virgem foi santificada, antes de nascer, no ventre materno.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Também na Santa Virgem primeiro existiu o corpo e depois, o espírito; pois, foi primeiro concebida carnalmente e depois, santificada no seu espírito.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Agostinho se exprime segundo a lei comum, pela qual ninguém se regenera pelos sacramentos senão depois de ter nascido. Mas Deus não sujeitou o seu poder a essa lei dos sacramentos, que não pudesse conferir a sua graça, por um especial privilégio, a certos, mesmo antes de nascidos do ventre materno.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A Santa Virgem foi purificada, no ventre materno, do pecado original, quanto à mácula pessoal; mas não ficou isenta do reato, a que toda natureza estava sujeita, não podendo por isso entrar no paraíso, senão mediante o sacrifício de Cristo; como também se deu com os santos Patriarcas que existiram antes de Cristo.
RESPOSTA À QUARTA. — O pecado original foi contraído na origem, pois é pela origem que se comunica a natureza humana, a que propriamente respeita o pecado original. O que se dá quando a criatura concebida recebe a alma. E por isso nada impede seja ela purificada, depois de recebida a alma; pois, depois disso, se ainda continua no ventre materno, é para receber, não a natureza humana, mas uma certa perfeição da natureza já recebida.
O segundo discute-se assim. — Parece que a Santa Virgem foi santificada antes de ser animada. 1 - Pois, como se disse, mais graças foram conferidas à Virgem Mãe de Deus, que a qualquer santo. Ora, a certos foi concedido o serem santificados antes da animação. Pois, diz a Escritura: Antes que eu te formasse no ventre de tua mãe, te conheci; ora, a alma não é infundida antes da formação do corpo. Semelhantemente, diz, de João Batista, Ambrósio: Ainda não tinha o espírito da vida e já nele existia o Espírito da graça. Logo, com muito maior razão, a Santa Virgem podia ser santificada, antes da animação.
2. Demais. — Era conveniente, como diz Anselmo, que a Santa Virgem resplendesse pela maior pureza possível, logo abaixo de Deus. Donde o dizer a Escritura: Toda tu és formosa, amiga minha, e em ti não há mácula. Ora, maior seria a pureza da Santa Virgem se nunca a sua alma tivesse sido inquinada do contágio do pecado original. Logo, foi-lhe concedida a santificação da carne, antes de animada.
3. Demais. — Como se disse, não se celebra festa senão de quem é santo. Ora, certos celebram a festa da Conceição da Santa Virgem. Logo, parece que foi santa na sua concepção mesma. E assim foi santificada antes da animação.
4. Demais. — O Apóstolo diz: Se a raiz é Santa, também os ramos. Ora, a raiz dos filhos são os seus pais. Logo, a Santa Virgem também podia ser santificada nos seus pais antes da animação. Mas, em contrário, as coisas do Antigo Testamento são as figuras do Novo, conforme aquilo do Apóstolo: Todas estas coisas lhes aconteciam a eles em figura. Ora, parece que a santificação do tabernáculo, do qual diz a Escritura — santificou o seu tabernáculo o Altíssimo — significa a santificação da Mãe de Deus, chamada também pela Escritura, tabernáculo de Deus, como se lê: No sol pôs o seu tabernáculo. E do tabernáculo foi ainda dito: Depois de acabadas todas estas coisas, cobriu uma nuvem o tabernáculo do testemunho e a glória do Senhor o encheu. Logo, também a Santa Virgem não foi santificada, senão depois de perfeitas todas as suas partes, isto é, o corpo e a alma.
SOLUÇÃO. — Dupla razão podemos dar, da santificação da Santa Virgem, antes de animada. A primeira é que, a santificação, de que tratamos não é mais que a purificação do pecado original; pois, a santidade é a pureza perfeita, como diz Dionísio. Ora, a culpa só pode ser delida pela graça, cujo sujeito só é a criatura racional. E por isso, antes, da infusão da alma racional, a Santa Virgem não foi purificada. — Segundo, porque, sendo susceptível de culpa só a criatura racional, o ser concebido não é contaminado pela culpa senão depois da infusão da alma racional. Assim, de qualquer modo que a Santa Virgem fosse santificada, antes da animação, não teria nunca incorrido na mácula da culpa original; e, portanto, não teria precisado da redenção e da salvação, operada por Cristo, de quem diz o Evangelho: Ele salvará o seu povo dos pecados deles. Ora, é inadmissível que Cristo não seja o Salvador de todos os homens, como diz o Apóstolo. - Donde se conclui, que a santificação da Santa Virgem se deu depois da sua animação.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Quando o Senhor diz que conheceu Jeremias, antes de formado no ventre materno, isso se entende, pela ciência de predestinação; mas diz que o santificou, não antes de formado, mas antes de saído do ventre materno. — Quanto ao dizer Ambrósio, que João Batista ainda não tinha o espírito da vida e já tinha o Espírito da graça, não se deve entender como significando o espírito da vida a alma vivificante, mas significando espírito o ar exterior respirado. Ou podemos dizer, que ainda não tinha o espírito da vida, isto é, a alma, nas suas operações manifestas e completas.
RESPOSTA À SEGUNDA. — O não ter sido nunca a alma da Santa Virgem inquinada do contágio do pecado original, se oporia à dignidade de Cristo, como Salvador universal de todos. Por isso, logo abaixo de Cristo, que não precisava ser salvo, como Salvador universal, a máxima pureza foi a de Santa. Virgem. Pois, Cristo de nenhum modo contraiu o pecado original, mas foi santo desde a sua conceição, segundo aquilo do Evangelho: O santo que há de nascer de ti será chamado Filho de Deus. Mas, a Santa Virgem contraiu por certo o pecado original, sendo contudo dele purificada, antes de nascida do ventre materno. E é o que significa a Escritura quando diz, referindo-se à noite do pecado original. Espere a luz, isto é, Cristo, e não a veja – porque nada mais manchado cai nela; nem o nascimento da aurora quando raia, isto é, da Santa Virgem, que, no seu nascimento, foi imune do pecado original.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Embora não celebre a Igreja Romana a Conceição da Santa Virgem, tolera contudo o costume de certas igrejas celebrarem essa festividade. Por isso, não deve essa celebração ser totalmente reprovada. Nem o fato, porém, de ser celebrada a festa da Conceição, significa que a Virgem foi santa na sua Conceição. Mas sim, que por se lhe ignorar o tempo da santificação, celebram-lhe a festa da santificação, antes que a da conceição, no dia da conceição.
RESPOSTA À QUARTA. — Há duas espécies de santificação. — Uma, de toda a natureza, isto é, enquanto que toda a natureza é liberada totalmente da corrupção da culpa e da pena. O que se dará na ressurreição. — Outra é a santificação pessoal, que não se transmite à prole carnalmente gerada, porque não diz respeito essa santificação à carne, mas, ao espírito. Por onde, se os pais da Santa Virgem foram purificados do pecado original, contudo a Santa Virgem não deixou de contrair o pecado original, por ter sido concebida na concupiscência da carne e pela conjunção do homem e da mulher. Assim, diz Agostinho: Tudo o nascido do concúbito é carne de pecado.
O terceiro discute-se assim. — Parece que a Santa Virgem não foi purificada do contágio do gérmen da concupiscência.
1. Pois, assim como a pena do pecado original é a concupiscência, consistente na rebelião das potências inferiores contra a razão, assim também a pena do pecado original é a morte e as demais penalidades corpóreas. Ora, a Santa Virgem foi sujeita a essas penalidades. Logo, também não foi totalmente isenta da concupiscência.
2. Demais. — O Apóstolo diz: A virtude se aperfeiçoa na enfermidade, referindo-se à enfermidade da concupiscência, por causa da qual sofria o estímulo da carne. Ora, a Santa Virgem não foi privada de nada do que exige a perfeição da virtude. Logo, não foi de todo isenta da concupiscência.
3. Demais. — Damasceno diz, que o Espírito Santo sobrevém à Santa Virgem, purificando-a antes da concepção do Filho de Deus. O que não pode entender-se senão da purificação da concupiscência, pois, nenhum pecado cometeu, como diz Agostinho. Logo, pela santificação no ventre materno não foi de todo isenta da concupiscência. Mas, em contrário, a Escritura: Toda tu és formosa, amiga minha, e em ti não há mácula. Ora, a concupiscência é mácula, pelo menos da carne. Logo, na Santa Virgem não houve concupiscência.
SOLUÇÃO. — Nesta matéria divergem as opiniões. — Assim, uns disseram que a Santa Virgem, pela sua santificação mesma, operada no ventre materno, ficou totalmente isenta da concupiscência. — Mas outros dizem que lhe permaneceu a concupiscência, enquanto causa de dificuldade na prática do bem; ficou porém dela isenta, enquanto inclinação para o mal. — Outros, ainda, disseram que ficou isenta da concupiscência, no atinente à corrupção da pessoa, enquanto impede para o mal e dificulta o bem; mas não o ficou, quanto à corrupção da natureza, isto é, enquanto a concupiscência é a causa da transmissão do pecado original aos filhos. — Outros, enfim, dizem que, a primeira santificação não eliminou a concupiscência, mas a deixou travada nos seus efeitos; sendo porém totalmente eliminada na concepção mesma do Filho de Deus. Mas, para bem compreendermos, neste assunto, devemos notar que contágio do pecado nada mais é que uma concupiscência desordenada do apetite sensível; mas, habitual, porque a concupiscência atual é o movimento do pecado. Diremos porém que a concupiscência da sensualidade é desordenada, porque repugna à razão; o que se dá, por inclinar para o mal ou opor dificuldades ao bem. Por onde, é da natureza mesma da concupiscência inclinar para o mal, ou dificultar a prática do bem. Por isso, dizer que a concupiscência existiu na Santa Virgem, sem a inclinar para o mal, é querer que coexistam duas coisas opostas. - Semelhantemente, também implica oposição o permanecer da concupiscência enquanto corrupção da natureza e não enquanto corrupção da pessoa. Pois, segundo Agostinho, é a concupiscência que transmite para a prole o pecado original. Ora, essa é uma concupiscência desordenada e não totalmente sujeita à razão. Se, pois, a concupiscência tivesse sido totalmente eliminada, enquanto corrupção da pessoa, não poderia permanecer enquanto corrupção da natureza. Resta, pois, admitirmos ou que a primeira santificação a isentou totalmente da concupiscência ou que, se esta subsistiu, ficou travada nos seus efeitos. Pois, poder-se-ia entender que a concupiscência ficou totalmente eliminada, na Santa Virgem, por lhe ter sido concedida, pela abundância da graça que lhe foi conferida, uma tal disposição das potências da alma, que as inferiores nunca se movessem sem o assentimento da razão. Tal o que dissemos ter passado com Cristo, de quem sabemos que não teve inclinação para o pecado, e com Adão, antes do pecado, pela justiça original. De modo que, assim, nesta matéria, a graça da santificação teve para a Virgem a virtude da justiça original. Mas, embora esta opinião venha salvar a dignidade da Virgem Mãe, contraria de algum modo à dignidade de Cristo, sem cuja virtude ninguém pode livrar-se da condenação primitiva. E embora pela fé de Cristo, e, antes da sua Encarnação, certos fossem espiritualmente livres dessa condenação, contudo ninguém poderia livrar-se dela, quanto à carne, senão depois da Encarnação, pela qual devia primariamente manifestar-se a imunidade dessa condenação. Por onde, assim como antes da imortalidade da carne de Cristo ressurrecto, ninguém alcançou a imortalidade da carne, assim é inconveniente admitirmos que, antes da carne de Cristo, que não teve nenhum pecado, a carne da Virgem sua Mãe, ou de quem quer que seja, fosse isenta da concupiscência, chamada lei da carne ou dos membros. Por isso parece melhor pensarmos que, a santificação no ventre materno não isentou a Santa Virgem da concupiscência, na sua essência, mas os seus efeitos ficaram paralisados. Não por ato da sua razão, como se deu com os varões santos; pois, não teve o uso do livre arbítrio logo que começou a existir no ventre materno – privilégio especial de Cristo; mas, a abundância da graça, recebida na santificação, e ainda mais perfeitamente por ação da divina providência, paralisou-lhe todo movimento desordenado dos sentidos. Mas, depois, na concepção mesma da carne de Cristo, quando primeiramente devia refulgir a imunidade do pecado, devemos crer que do filho redundou ela para a mãe, ficando então totalmente eliminada a inclinação para o pecado. E já isso estava figurado na Escritura, quando diz: Eis que entrava a glória do Deus de Israel pela banda do oriente, isto é, por meio da Santa Virgem; e a terra estava resplandecente pela presença da sua majestade, isto é de Cristo.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A morte e outras penalidades semelhantes por si mesmas não inclinam ao pecado. E por isso Cristo, embora assumisse a elas, não se sujeitou à concupiscência. E por isso também na Santa Virgem, para conformar-se ao Filho, de cuja plenitude recebeu a graça - primeiro, a concupiscência ficou impedida nos seus efeitos e, depois, foi eliminada; mas não ficou livre da morte e de outras penalidades semelhantes.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A fraqueza da carne constituída pela sua inclinação ao pecado, é certo, para os varões santos uma ocasião de virtude perfeita; mas não a causa sem a qual não possa a perfeição ser alcançada. Basta, pois, atribuir à Santa Virgem a virtude perfeita pela abundância da graça; nem lhe é preciso atribuir toda ocasião possível de perfeição.
RESPOSTA À TERCEIRA. — O Espírito Santo operou na Santa Virgem uma dupla purificação. - Uma, quase preparatória à conceição de Cristo, que veio, não purificá-la de qualquer impureza da culpa ou da concupiscência, mas imprimir mais profundamente na sua alma o caráter de unidade e elevá-la acima da multidão. Assim, também dizemos que são purificados os anjos, nos quais não há nenhuma impureza, como diz Dionísio. - A outra purificação o Espírito Santo operou na Santa Virgem, mediante a concepção de Cristo, obra do mesmo Espírito. E, por ela, podemos dizer que a purificou totalmente da concupiscência.
O quarto discute-se assim. — Parece que, pela santificação no ventre materno, a Santa Virgem não foi preservada de todo pecado atual.
1. — Pois, como se disse, depois da primeira purificação, permaneceu na Virgem a inclinação para o pecado. Ora, o movimento da concupiscência, mesmo se prevenir a razão, é pecado venial, embora levíssimo, como diz Agostinho. Logo, na Santa Virgem houve algum pecado venial.
2. Demais. — Aquilo do Evangelho — Uma espada transpassará a tua mesma alma — diz Agostinho, que a Santa Virgem, na morte do Senhor, duvidou por causa da sua dor imensa. Ora, duvidar da fé é pecado. Logo, não foi preservada imune de todo pecado.
3. Demais. — Crisóstomo, expondo aquilo do Evangelho — Olha que tua mãe e teus irmãos estão ali fora e te buscam — diz: É manifesto que só por vanglória o faziam. E aquele outro lugar do Evangelho — não tem vinho — diz o mesmo Crisóstomo, que ela queria assim fazer-lhes uma graça e tornar-se mais ilustre, pelo seu Filho; e talvez resolvia algo de humano em seu coração, como os seus irmãos que diziam — manifesta-te a ti mesmo ao mundo. E logo depois acrescenta: Ainda não tinha dele a opinião que devia ter. O que tudo constitui pecado. Logo, a Santa Virgem não foi preservada imune de todo pecado. Mas, em contrário, Agostinho: Quando se trata da Santa Virgem, de nenhum modo admito que se fale em pecado, por causa da honra de Cristo. Não podemos duvidar tivesse ela recebido uma graça excepcional para vencer inteiramente o pecado, pois mereceu conceber e dar a luz àquele que sabemos foi absolutamente isento de pecado.
SOLUÇÃO. — Aqueles que Deus escolhe para algum fim, ele os prepara e dispõe, para serem idôneos ao fim para que foram escolhidos, segundo aquilo do Apóstolo: O qual nos fez idôneos ministros do Novo Testamento. Ora, a Santa Virgem foi divinamente escolhida para ser a Mãe de Deus. E por isso não devemos duvidar não a tenha Deus tornado idônea para tal, pela sua graça, segundo o anjo lhe anunciou: Achaste graça diante de Deus – eis conceberás, etc. Ora, não teria sido idônea para Mãe de Deus, se algum pecado tivesse cometido. — Quer porque a honra dos pais redunda para os filhos, segundo a Escritura: A glória dos filhos são os pais deles; e, por oposição, a ignomínia da mãe redundaria para o Filho. — Quer também porque tinha uma singular afinidade com Cristo, que dela recebeu a carne. Donde o dizer o Apóstolo: Que concórdia entre Cristo e Belial? - Quer ainda porque de um modo singular o Filho de Deus, que é a sabedoria de Deus, nela habitou; não só na alma, mas também no ventre. Assim, diz a Escritura: na alma maligna não entrará a sabedoria, nem habitará no corpo sujeito a pecados. - E por isso devemos pura e simplesmente confessar que a Santa Virgem não cometeu nenhum pecado atual, nem mortal e nem venial, de modo que nela se cumpriu o lugar da Escritura: Toda tu és formosa, amiga minha, e em ti não há mácula, etc.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Na Santa Virgem, depois de santificada no ventre, permaneceu por certo a inclinação para o pecado, mas sem produzir efeitos, não podendo por isso prorromper em nenhum movimento desordenado, que prevenisse a razão. E embora para isso contribuísse a graça da santificação, contudo para tal não bastava; do contrário, em virtude dessa graça, lhe teria sido concedido não existir nenhum movimento nos seus sentidos que não fosse prevenido pela razão; e então, nenhuma concupiscência teria, o que vai contra o já estabelecido. Donde devemos concluir, que o complemento a essa paralisação da concupiscência proveio da divina providência, que não permitia brotar nenhum movimento desordenado, da concupiscência.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Às referidas palavras de Simeão Orígenes, certos outros doutores as aplicam a dor sofrida por Cristo na paixão. - Quanto a Ambrósio, pela espada entende significar a prudência de Maria, não ignorante do mistério celeste. Pois, vivo é o verbo de Deus, válido e mais agudo que toda espada de dois gumes. - Outros, porém, entendem por isso a espada da dúvida não devendo, porém, entender-se se por esta a dúvida da infidelidade, mas a da admiração e da discussão. Assim, diz Basílio, que a Santa Virgem, aos pés da cruz e presenciando tudo o que se passou, depois mesmo do testemunho de Gabriel, depois do inefável conhecimento da divina concepção, depois da ingente realização dos milagres, flutuava na sua alma, vendo, de um lado, as humilhações que sofria seu Filho e, de outro, as maravilhas que realizava.
RESPOSTA À TERCEIRA. — As palavras citadas de Crisóstomo são exageradas. Podem, porém, ser interpretadas de modo a significar que o Senhor coibiu, não o movimento desordenado da vanglória, em si mesma, mas em relação à opinião que podiam ter os outros.
O quinto discute-se assim. — Parece que a Santa Virgem, pela santificação no ventre materno, não obteve a plenitude ou a perfeição da graça.
1. — Pois, isso constitui privilégio de Cristo, segundo o Evangelho: Nós vimos a sua glória de Filho unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade. Ora. o próprio de Cristo a ninguém mais deve ser atribuído. Logo, a Santa Virgem, não recebeu, na santificação, a plenitude das graças.
2. Demais. — Ao que tem a plenitude e a perfeição nada se lhe pode acrescentar, pois, perfeito é o ao que nada falta, segundo Aristóteles. Ora, a Santa Virgem recebeu, depois da sua santificação. um aumento de graça, quando concebeu a Cristo; pois, diz o Evangelho: O Espírito Santo descerá sobre ti. E ainda, quando foi da sua assunção para a glória. Logo, parece que não teve, na sua primeira santificação, a plenitude das graças.
3. Demais. — Deus nada faz em vão, como diz Aristóteles. Ora, a Santa Virgem teria tido em vão certas graças, cujo uso nunca exerceu; pois, o Evangelho não nos diz que ela tivesse ensinado, o que seria o exercício da sabedoria; nem que tivesse feito milagres, exercício da graça gratuita. Logo, não teve a plenitude das graças. Mas, em contrário, o Anjo lhe disse: Ave cheia de graça. O que Jerônimo assim explica: Na verdade, cheia de graça; pois, ao passo que os outros as recebem por partes, em Maria se lhe infundiu total e simultaneamente a plenitude das graças.
SOLUÇÃO. Quanto mais uma coisa se aproxima do princípio, num determinado gênero, tanto mais participa do efeito desse princípio; por isto diz Dionísio, que os anjos, mais próximos de Deus, mais, participam da bondade divina, que os homens. Ora, Cristo é o princípio da graça; pela divindade, como autor dela; pela humanidade, como instrumento. Donde o dizer o Evangelho: A graça e a verdade foi trazida por Jesus Cristo. Ora, a Santa Virgem Maria foi a mais próxima de Cristo pela humanidade, pois dela recebeu ele a natureza humana. Por isso, mais que ninguém, devia receber de Cristo a plenitude da graça.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A cada um Deus dá a graça conforme o para que é escolhido. E como Cristo, enquanto homem foi predestinado e escolhido para que fosse, no dizer do Apóstolo, predestinado Filho de Deus com poder, segundo o espírito de santificação, era-lhe próprio ter uma plenitude de graça tal que redundasse para os outros, conforme aquilo do Evangelho: Todos nós participamos da sua plenitude. A Santa Virgem Maria, porém, obteve a plenitude de modo a ser a mais chegada ao autor da graça; de maneira que recebesse em si o que é a plenitude de todas as graças e, dando-o a luz, a graça em algum sentido derivasse para todos.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Na ordem natural, o que primeiro existe é a perfeição da disposição, por exemplo, a perfeição da matéria para receber a forma. Depois vem a perfeição da forma superior; assim, mais perfeito é o calor em si, proveniente da forma do fogo, que o que dispôs para a forma ígnea. Em terceiro lugar, vem a perfeição do fim: assim, o fogo tem as suas qualidades no grau mais perfeito, quando chegado ao seu lugar. Semelhantemente, tríplice perfeição houve na Santa Virgem. — A primeira, e como dispositiva, que a tornava idônea para ser Mãe de Cristo. É essa foi a perfeição da santificação. — A segunda perfeição da graça foi na Santa Virgem, a presença do Filho de Deus incarnado no seu ventre. — A terceira foi a perfeição do fim, que desfruta na glória. Ora, que a segunda perfeição é superior à primeira e à terceira, que a segunda, é claro, de um modo, pela liberação do mal. Pois, primeiro, pela sua santificação foi liberta da culpa original; depois, na conceição do Filho de Deus, foi totalmente purifica da da concupiscência; enfim, em terceiro lugar pela sua glorificação, foi libertada também de todas as misérias da vida. — De segundo modo, pela ordenação para o bem. Assim, primeiro, na sua santificação, alcançou a graça, que inclina para o bem; depois, na concepção do Filho de Deus, consumou-se-lhe a graça, tendo sido confirmada no bem; e enfim na sua glorificação, consumou-se-lhe a graça, que lhe deu a fruição perfeita de todos os bens.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Não podemos duvidar que recebesse a Santa Virgem, e excelentemente, o dom da sabedoria e a graça das virtudes e também a graça da profecia, como a teve Cristo. Não as recebeu, porém, de modo a ter o uso de todas essas graças e de outras semelhantes, como o teve Cristo; mas só na medida em que lhe convinha à sua condição. — Assim, teve o uso da sabedoria, na contemplação, segundo o Evangelho: Maria conservava todas essas palavras, conferindo lá no fundo do seu coração umas com as outras. Mas, não teve o uso da sabedoria, porque ensinasse, pois isso não convinha ao sexo feminino, segundo aquilo do Apóstolo: Eu não permito à mulher que ensine. — Quanto à realizar milagre, não lhe convinha durante a vida, porque, nesse tempo a doutrina devia confirmar-se pelos milagres de Cristo; por isso só a Cristo e aos seus discípulos, portadores da doutrina de Cristo, convinha fazer milagres. Por isso, mesmo de João Batista diz o Evangelho, que não fez nenhum milagre; e isso para que todos buscassem a Cristo. — E enfim, o uso da profecia ela o teve, como o declara o Cântico que fez: A minha alma magnifica o Senhor.
O sexto discute-se assim. — Parece que ser santificada no ventre materno foi, depois de Cristo, próprio à Santa Virgem.
1. — Pois, corno se disse, a Santa Virgem foi santificada no ventre materno para tornar-se, assim, idônea a ser Mãe de Deus. Ora, isto lhe foi próprio a ela. Logo, só ela foi santificada no ventre materno.
2. Demais. — Certos foram mais próximos de Cristo, que Jeremias e João Batista, dos quais refere a Escritura, que foram santificados no ventre materno. Pois, Cristo é especialmente chamado filho de Davi e de Abraão, por causa da promessa a eles especialmente feita, a respeito de Cristo. E também Isaías mui expressamente profetou sobre Cristo. Os Apóstolos, por seu lado, conviveram com o próprio Cristo. E contudo de nenhum desses se lê que fosse santificado no ventre materno. Logo, nem Jeremias nem João Batista poderiam tê-lo sido.
3. Demais. — Jó diz de si: Desde a minha infância cresceu comigo a comiseração, e do ventre de minha mãe saía comigo. Nem por isso, contudo, dizemos que foi santificado no ventre materno. Logo, também não somos forçados a admitir que João Batista e Jeremias foram santificados no ventre materno. Mas, em contrário, diz a Escritura, de Jeremias: Antes que eu te formasse no ventre de tua mãe, te santifiquei. E, de João Batista: Já desde o ventre de sua mãe será cheio do Espírito Santo.
SOLUÇÃO. — Agostinho manifesta alguma dúvida quanto à santificação das duas referidas personagens, no ventre materno. Pois, diz, o saltor de João no ventre materno podia significar que esse tão grande acontecimento, a saber, que a mulher seria a Mãe de Deus, deveria ser conhecido pelos pais da criança concebida, e não por ela. Por isso, o Evangelho não diz – O menino creu, no ventre, mas — deu saltos. Ora, saltos nós os vemos darem não só as crianças, mas também os animais. Mas, os de que tratamos foram insólitos, por terem sido no ventre materno. E assim, como soem se fazerem os milagres, esses saltos o menino os deu por ação divina e não por suas próprias e humanas forças. Embora também pudéssemos admitir que, nesse menino, o uso da razão e da vontade foi de tal modo precoce que, ainda nas vísceras maternas, já pudesse conhecer, crer, consentir, o que só em idade mais avançada o podem as outras crianças; e isso penso dever ser atribuído a milagre do poder divino. Mas, como o Evangelho diz expressamente de João, que já desde o ventre de sua mãe será cheio do Espírito Santo; e também expressamente, de Jeremias: Antes que eu te formasse no ventre de tua mãe te santifiquei, devemos admitir, que foram santificados no ventre materno, embora não tivessem o uso do livre arbítrio, que é questão levantada por Agostinho; assim como também as crianças santificadas pelo batismo não tem desde então o uso do livre arbítrio. Nem devemos crer que quaisquer outros fossem santificados no ventre materno, dos quais nenhuma menção faz a Escritura; pois, tais privilégios da graça, conferidos a certos fora da lei geral, ordenam-se ao privilégio dos outros, segundo o Apóstolo: A cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito. Ora, essa utilidade seria nula se a Igreja não soubesse quem fosse santificado no ventre materno. E embora não possamos par razão dos juízos de Deus e porque foi esse dom da graça conferido a um, de preferência a outro, foi contudo conveniente que João Batista e Jeremias fossem santificados no ventre materno, para prefigurarem a santificação que havia de ser operada por Cristo. Primeiro, pela sua paixão, conforme aquilo do Apóstolo: Também Jesus, para que santificasse ao povo pelo seu sangue, padeceu fora da porta. Cuja paixão, Jeremias mui claramente anunciou, com palavras e com mistérios, e pelos seus sofrimentos muito expressamente prefigurou. Segundo, pelo batismo, como o diz o Apóstolo: Mas haveis sido lavados, mas haveis sido santificados. Para cujo batismo João preparou os homens, pelo seu batismo.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A Santa Virgem, escolhida por Deus como mãe, recebeu mais ampla graça de santificação que João Batista e Jeremias, que foram eleitos com especiais prefigurantes da santificação de Cristo. E a prova é que à Santa Virgem foi concedido que, no futuro, não pecasse, nem mortal nem venialmente; ao passo que aos outros santificados cremos lhes foi concedido que, no futuro não pecassem, por proteção da graça divina.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Por outros lados podiam os santos estar mais unidos a Cristo, que Jeremias e João Batista; os quais, contudo mais unidos estavam com ele, como figuras expressivas que eram, da santificação dele, como se disse.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A comiseração a que se refere Jó não significa a virtude infusa, mas uma certa inclinação natural para o ato.