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tertia pars Q.50 →

A morte de Cristo

Em seguida devemos tratar da morte de Cristo. E nesta questão discutem-se seis artigos:

Art. 1 — Se foi conveniente que Cristo morresse.

O primeiro discute-se assim. — Parece que não foi conveniente que Cristo morresse.

1. — Pois, o primeiro princípio, num gênero, não pode ser subordinado ao que é contrário a esse gênero; assim o fogo, princípio do calor, nunca pode ser frio. Ora, o Filho de Deus é a fonte e o princípio de toda a vida, segundo aquilo da Escritura: Em ti está a fonte da vida. Logo, parece que não foi conveniente que Cristo morresse.

2. Demais. — Maior miséria é a morte que a doença, por que por esta se chega àquela. Ora, não é conveniente que Cristo sofresse nenhuma doença, como diz Crisóstomo. Logo, também não o era que morresse.

3. O Senhor diz: Eu vim para terem vida e para a terem em maior abundância. Ora, um contrário não conduz a outro. Logo, parece que não era conveniente que Cristo morresse. Mas, em contrário, o Evangelho: Convém-vos que morra um homem pelo povo e que não pereça toda a nação.

SOLUÇÃO. — Foi conveniente que Cristo morresse. — Primeiro, para satisfazer pelo gênero humano, que tinha sido condenado à morte por causa do pecado, segundo aquilo da Escritura: Em qualquer dia que comeres dele, morrerás de morte. Ora, o modo conveniente de satisfazermos por outrem é nos sujeitarmos àpena que ele merecia. Por isso Cristo quis morrer a fim de morrendo, satisfazer por nós, segundo a Escritura: Cristo uma vez morreu pelos nossos pecados. — Segundo, para mostrar que assumiu verdadeiramente a natureza humana. Pois, como diz Eusébio, se Cristo, depois de ter vivido no meio dos homens, houvesse, para evitar a morte, desaparecido inopinadamente, ocultando-se-lhes aos olhos, todos os teriam julgado um fantasma. — Terceiro, a fim de morrendo, livrar-nos do temor da morte. Donde o dizer o Apóstolo: Ele participou igualmente da carne e do sangue, para destruir pela sua morte ao que tinha o império da morte, isto é, ao diabo; e para livrar aqueles que pelo temor da morte estavam em escravidão toda a vida. — Quarto, a fim de que, morrendo corporalmente, à semelhança do pecado, isto é, da pena, nos desse exemplo de morrer espiritualmente para o pecado. Donde o dizer o Apóstolo: Porque, enquanto a ele morrer pelo pecado, morreu uma só vez; mas, quanto a viver, vive para Deus. Assim também vós considerai-vos como estando mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Nosso Senhor Jesus Cristo. — Quinto, a fim de, ressurgindo dos mortos, mostrasse ao mesmo tempo o seu poder, pelo qual venceu a morte, e nos desse a esperança de ressurgir dos mortos. Donde o dizer o Apóstolo: Se se prega que Cristo ressuscitou dentre os mortos, como dizem alguns dentre vós outros que não há ressurreição de mortos?

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Cristo é a fonte da vida, como Deus, mas não como homem. Ora, morreu como homem e não como Deus. Donde o dizer Agostinho: Longe de nós pensar que Cristo, sendo ele próprio a vida, morreu perdendo-a; pois, se tal tivesse acontecido, a fonte da vida teria secado. Mas, padeceu a morte enquanto participante da fraqueza humana, que assumira espontaneamente, sem contudo perder o poder da sua natureza, pelo qual tudo vivifica.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Cristo não sofreu a morte originada de nenhuma doença, para que não se pensasse que morreu por enfermidade imposta pela natureza. Mas sim, a morte que lhe foi infligida exteriormente, ao que espontaneamente se submeteu para mostrar que era morte voluntária.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Um contrário não conduz a outro, essencialmente falando; mas tal pode dar- se por acidente, como quando, por exemplo, o frio aquece acidentalmente. E deste modo Cristo, pela sua morte, nos conduziu àvi ,destru

Art. 2 — Se na morte de Cristo a divindade separou-se da carne.

O segundo discute-se assim. — Parece que na morte de Cristo a divindade separou-se da carne.

1. — Pois, como refere o Evangelho, o Senhor pendente da cruz exclamou: Deus meu, Deus meu, porque me abandonaste? O que Ambrósio assim explica: Era o clamor do homem, no momento de morrer, pela separação da divindade; pois, a morte não tendo poder sobre a sua divindade, Cristo não podia morrer senão por ter-se a divindade, que é a vida, separado dele. Por onde parece que na morte de Cristo a divindade se lhe separou da carne.

2. Demais. — A remoção do meio separa os extremos. Ora, a divindade está unida àcarne mediante a alma, como se estabeleceu. Por onde parece que, na morte de Cristo, a alma se lhe separou da carne e, por consequência, dela também se separou a divindade.

3. Demais. — Maior é o poder vivificador de Deus que o da alma. Ora, o corpo não podia morrer senão pela separação da alma. Logo, com maior razão, não podia senão pela separação da divindade. Mas, em contrário, os atributos da natureza humana não se predicam do Filho de Deus senão por causa da união, como se estabeleceu. Ora, do Filho de Deus se atribui o ser sepulto, que convém ao corpo de Cristo depois da morte. Isso o mostra o símbolo da fé, quando diz: O Filho de Deus foi concebido, nasceu da Virgem, sofreu, foi morto e sepultado. Logo, o corpo de Cristo não se separou, na morte, da sua divindade.

SOLUÇÃO. — O que Deus concede por graça nunca nos é tirado senão por nossa culpa. Por isso diz o Apóstolo: Os dons e a vocação de Deus são imutáveis. Ora, muito maior é a graça da união, pela qual a divindade se uniu àcarne na pessoa de Cristo, que a graça da adoção, pela qual os outros são santificados. E também perdura mais, por natureza, porque essa graça se ordena à união pessoal, ao passo que a graça de adoção se ordena a uma união de certo modo afetiva. E, contudo vemos que a graça de adoção nunca é perdida sem culpa. Ora, Cristo não teve nenhum pecado. Logo, era impossível se lhe rompesse a união entre a divindade e a carne. Por onde, assim como antes da morte, a carne de Cristo estava unida, segundo a pessoa e a hipóstase, ao Verbo de Deus, assim lhe permaneceu unida depois da morte. De modo que não fosse uma a hipóstase do Verbo de Deus e outra a da carne de Cristo, depois da morte, como o diz Damasceno.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O abandono referido não respeita àsolução da união pessoal, mas ao fato de Deus Padre fê-lo exposto à Paixão. Assim, abandonar, no lugar citado, não significa senão proteger contra os perseguidores. — Ou Cristo se dizia abandonado, referindo-se ao pedido em que dizia: Pai, se é possível, passe este cálice de mim, como o expõe Agostinho.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Diz-se que o Verbo de Deus está unido àcarne mediante a alma, porque a carne faz parte, por meio da alma, da natureza humana, que o Filho de Deus pretendia assumir. Não, porém que a alma estivesse unida como um meio termo de ligação. Pois, a carne pertence à natureza humana, em virtude da alma, mesmo depois de separada esta daquela. Porque na carne morta conserva ainda, por ordenação divina, uma certa disposição para a ressurreição. Por isso não desapareceu a união da divindade com a carne.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A alma tem o poder de vivificar, como forma. Por onde, enquanto presente ao corpo e com ele unida formalmente, há de ele necessàriamente ser vivo. Ora, a divindade não tem a virtude de vivificar formalmente, mas efetivamente; pois, não pode ser a forma do corpo. Por onde, não é necessário que, enquanto permanece a união da divindade com a carne esta seja viva; porque Deus não age por necessidade, mas voluntariamente.

Art. 3 — Se na morte de Cristo houve separação entre a divindade e a alma.

O terceiro discute-se assim. — Parece que na morte de Cristo houve separação entre a divindade e a alma.

1. — Pois, diz o Senhor: Ninguém tira a minha alma de mim, mas eu de mim mesmo a ponho e de novo a reassumo. Logo, parece que corpo não pode depor a alma, separando-se dela; porque não está a alma sujeita ao poder do corpo, mas antes ao contrário. Donde resulta que Cristo, enquanto Verbo de Deus podia depor a sua alma; isto é, separa-la. Logo, depois da morte de Cristo a alma se lhe separou da divindade.

2. Demais. — Atanásio diz: Maldito seja quem não confessar que a natureza humana, na sua totalidade, assumida pelo Filho de Deus, não ressurgiu dos mortos, de novo assumida ou liberada no terceiro dia. Ora, a natureza humana em sua totalidade não podia ser de novo assumida, se não tivesse algum tempo sido separada do Verbo de Deus. Mas, o homem total é composto de alma e de corpo. Logo, houve durante algum tempo separação da divindade, tanto do corpo como da alma.

3. Demais. — Por causa da união com a natureza humana total, é o Filho de Deus verdadeiramente considerado homem. Se, pois, desaparecida a união entre a alma e o corpo pela morte, o Verbo de Deus permanecesse unido à alma, resultaria o podermos dizer que o Filho de Deus era verdadeiramente a alma. Ora. isso é falso, porque, sendo a alma a forma do corpo, resultaria que o Verbo de Deus seria a forma do corpo - o que é impossível. Logo, na morte de Cristo a alma ficou separada do Verbo de Deus.

4. Demais. — A alma e o corpo, separado um do outro, não constituem uma só hipótese, mas duas. Se, portanto, o Verbo de Deus permaneceu unido tanto ao corpo como à alma de Cristo, separada esta daquele pela morte de Cristo, resulta que o Verbo de Deus, durante a morte de Cristo, constituía duas hipóteses. O que é inadmissível. Logo, depois da morte de Cristo, a alma não permaneceu unida ao Verbo. Mas, em contrário, diz Damasceno: Embora Cristo morresse como homem e a sua alma santa se lhe ficasse separada do corpo imaculado, contudo a divindade continuava inseparável de uma e de outra, isto é, da alma e do corpo.

SOLUÇÃO. — A alma está unida ao Verbo de Deus mais imediatamente que ao corpo, e anteriormente a essa segunda união; pois, o corpo está unido ao Verbo de Deus mediante a alma, como dissemos. Ora, como o Verbo de Deus não se separou, na morte, do corpo, com muito maior razão não se separou da alma. Por onde, assim como predicamos do Filho de Deus o que convém ao corpo separado da alma, isto é, que foi sepultado, assim também dele dizemos no símbolo. que desceu aos infernos, porque a sua alma, separada do corpo, desceu aos infernos.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Agostinho, expondo as palavras referidas de João, pergunta se, sendo Cristo o Verbo, separou-se da alma, enquanto era alma ou, de novo, enquanto era carne. E afirma que, se dissermos que depôs a alma enquanto o Verbo de Deus, resulta que algum tempo essa alma esteve separada do Verbo. Ora, isso é falso. Pois, a morte separou o corpo, da alma; mas não afirmo com isso que a alma ficou separada do Verbo. Se, porém dissermos que a própria alma se separou a si mesma, resulta que a alma mesma se separou de si própria. O que é absurdissimo. Resta, pois, que a carne mesmo depôs a alma e de novo a assumiu, não por poder próprio, mas por poder do Verbo que nela habitava; porque, como dissemos, depois da morte a divindade do Verbo não se separou da carne.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Com as palavras aduzidas, Atanásio não quis dizer que a natureza humana em sua totalidade foi de novo assumida, isto é, todas as suas partes, como se o Verbo de Deus deparasse, pela morte, as partes da natureza humana. Mas que a totalidade da natureza humana, de novo assumida na ressurreição, foi reintegrada pela renovada união da alma e do corpo.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O Verbo de Deus, por causa da união da natureza humana, não é considerado por isso como a natureza humana; mas é chamado homem, isto é, o que tem a natureza humana. Pois, a alma e o corpo são partes essenciais da natureza humana. Por onde, da união do Verbo com elas ambas não resulta que o Verbo de Deus seja alma ou corpo, mas , sim, que tem alma ou corpo.

RESPOSTA À QUARTA. — Como diz Damasceno, na morte de Cristo separou-se a alma, da carne, mas não se dividiu uma mesma hipóstase em duas. Pois, tanto o corpo como a alma de Cristo, à mesma luz, tiraram a sua existência, desde o principio, da hipóstase do Verbo. E na morte, separadas entre si, cada qual continuou tendo a mesma hipóstase do Verbo. Porque a mesma hipóstase do Verbo permaneceu a hipóstase do Verbo, da alma e do corpo. Pois, nunca nem a alma nem o corpo tiveram nenhuma hipóstase própria, além da hipóstase do Verbo; porque sempre é uma hipóstase do Verbo e nunca duas.

Art. 4 — Se Cristo, no tríduo da morte, cessou de ser homem.

O quarto discute-se assim. — Parece que Cristo, no tríduo da morte, não cessou de ser homem.

1. — Pois, diz Agostinho: Foi tal a união do Verbo com a natureza humana, que tornou Deus, homem, e o homem, Deus. Ora, essa união não cessou com a morte. Logo, não cessou Cristo de ser homem, durante a morte.

2. Demais. — O Filósofo diz: Cada homem é o seu próprio intelecto. Por isso, dirigindo-nos à alma de S. Pedro, depois da morte dele, dizemos: São Pedro, ora por nós. Ora, depois da morte, o Filho de Deus não se separou da sua alma racional. Logo, nesse tríduo o Filho de Deus continuou a ser homem.

3. Demais. — Todo sacerdote é homem. Ora, durante o tríduo da sua morte Cristo foi sacerdote, do contrário não seria verdadeiro o dito da Escritura - Tu és sacerdote eternamente. Logo, durante esse tríduo Cristo foi homem. Mas, em contrário. — Removido o superior, removido fica o inferior. Ora, ser vivo ou animado é superior ao a ser animal e homem; pois, o animal é uma substância animada sensível. Mas, no tríduo da sua morte, o corpo de Cristo não foi nem vivo nem animado. Logo, não foi homem.

SOLUÇÃO. — Que Cristo verdadeiramente morreu é artigo de fé. Portanto, qualquer afirmação contrária à verdade da morte de Cristo é erro contra a fé. Por isso se diz numa Epístola Sinodal de Cirilo: Quem não confessar que o Verbo de Deus sofreu na sua carne, foi crucificado ria sua carne e na sua carne padeceu a morte, seja anátema. Ora, um homem ou um animal verdadeiramente morto deixa de ser homem ou animal; pois, a morte do homem ou do animal resulta da separação da alma, por ser esta a que completa a natureza animal ou humana. Por onde, é errôneo dizer que Cristo, durante o tríduo da sua morte, foi homem, simples e absolutamente falando. Podemos, porém dizer, que durante esse tríduo Cristo foi um homem morto. Certos, porém confessaram que Cristo, nesse tríduo, foi homem, servindo-se assim de uma expressão errônea, sem, contudo darem à sua fé um sentido errôneo. Tal Hugo de S. Vitor, que disse ter sido Cristo homem no tríduo da sua morte, porque considerava a alma como o homem. Isso, porém é falso, como demonstramos na Primeira Parte. Também o Mestre das Sentenças afirmou que Cristo foi homem no tríduo da sua morte, mas por outra razão. Era essa a de crer que a união da alma e do corpo não é da natureza do homem, bastando para alguém ser homem uma alma humana e um corpo, quer estejam unidas quer separadas. Mas a falsidade dessa opinião também já o mostramos na Primeira Parte e pelo que antes dissemos sobre o modo da união.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O Verbo de Deus assumiu a alma unida com o corpo; e por isso essa assunção tornou Deus o homem e o homem, Deus. Mas tal assunção não cessou pela separação do Verbo, da alma e do corpo; cessou porém a união entre o corpo e a alma.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O dizer-se que o homem é o seu intelecto não significa que o intelecto é o homem na sua totalidade, mas que é a principal parte do homem, no qual existe virtualmente a disposição total deste. Como se disséssemos que o chefe do Estado fosse todo o Estado, porque é ele quem lhe dá a sua disposição total.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Ser sacerdote convém ao homem em razão da alma, na qual está o caráter da ordem. Por isso, pela morte, o homem não perde a ordem sacerdotal. E muito menos Cristo, origem de todo sacerdócio.

Art. 5 — Se o corpo de Cristo foi identicamente o mesmo quando vivo e quando morto.

O quinto discute-se assim. — Parece que o corpo de Cristo não foi identicamente o mesmo quando vivo e quando morto.

1. — Pois, Cristo morreu verdadeiramente, como morrem os outros homens. Ora, o corpo de qualquer forma não é identicamente o mesmo quando vivo e quando morto, absolutamente falando, porque há entre um e outro uma diferença essencial. Logo, nem o corpo de Cristo foi identicamente o mesmo quando vivo e quando morto.

2. Demais. — Segundo o Filósofo, coisas especificamente diversas são também diversas numericamente. Ora, o corpo de Cristo foi especificamente diverso quando vivo e quando morto; pois, não dizemos que um morto tem olhos ou carne senão em sentido equívoco, como ensina o Filósofo. Logo e em sentido absoluto, o corpo de Cristo não foi identicamente o mesmo, quando vivo e quando morto.

3. Demais. — A morte é uma forma da corrupção. Ora o que sofre uma corrupção substancial já não existe, depois de corrupto; pois, a corrupção é a passagem do ser para o não-ser. Logo, o corpo de Cristo, depois de morto, não permaneceu identicamente o mesmo que antes era, pois a morte é uma corrupção substancial. Mas, em contrário, diz Atanásio: O corpo de Cristo quando circunciso, quando andava, quando trabalhava e quando foi pregado na cruz era o Verbo de Deus impassível e incorpóreo; o mesmo se conservou quando deposto no sepulcro. Ora, o corpo de Cristo estava vivo quando foi circunciciado e pregado no madeiro; e estava morto, quando depositado no sepulcro. Logo, foi o mesmo o corpo vivo e o morto.

SOLUÇÃO. — A expressão simplesmente falando é susceptível de dois sentidos. — Num, simplesmente significa o mesmo que absolutamente; assim é dito absolutamente o que o é sem nenhum acréscimo, como explica o Filósofo. E, neste sentido, o corpo de Cristo tanto vivo como morto foi simplesmente o mesmo. Pois, dizemos que é simples e identicamente o mesmo o que o é pelo seu suposto. Ora, o corpo de Cristo, tanto vivo como morto, teve o mesmo suposto, pois, vivo e morto não teve outra hipóstase além da do Verbo de Deus, como dissemos. E é este o sentido das palavras citadas de Atanásio. — Noutro sentido, simplesmente quer dizer completamente ou totalmente. E então, o corpo de Cristo vivo não foi simplesmente o mesmo que quando morto. Porque não foi totalmente o mesmo; pois, fazendo a vida parte da essência do corpo vivo, é dele um predicado essencial e não acidental. Donde resulta por consequência que o corpo, deixando de ser vivo, não permanece totalmente o mesmo. Se, porém disséssemos que o corpo de Cristo morto permaneceu totalmente o mesmo, seguir-se-ia que não ficou corrupto, pela corrupção, digo, da morte. E essa é a heresia dos Gaianitas, como refere Isidoro e está nas Decretais. E Damasceno diz, que a palavra corrupção tem dois sentidos: num significa a separação das almas, do corpo e fenômenos semelhantes; noutro, a resolução perfeita aos elementos. Por onde, dizer com Juliano e Gaiano, que o corpo do Senhor ficou incorruptível, conforme ao primeiro sentido da corrupção, antes de ter ressurgido, é ímpio. Porque então o corpo de Cristo não teria sido consubstancial com o nosso, nem teria verdadeiramente morrido, nem nós teríamos verdadeiramente sido salvos. Mas, no segundo sentido, o corpo de Cristo foi incorrupto.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O corpo morto de qualquer homem não continua unido a nenhuma hipóstase permanente, como o corpo de Cristo morto. Por isso, o corpo morto de qualquer homem não é absolutamente idêntico ao que era quando vivo, mas só de certo modo; porque conserva a identidade material sem conservar a mesma forma. Ao contrário, o corpo de Cristo permaneceu identicamente o mesmo, em sentido absoluto, por causa da identidade do suposto, como dissemos.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Dizemos que um ser é identicamente o mesmo, pelo seu suposto; e especificamente idêntico quando pela forma o é. Sempre que o suposto subsiste numa só natureza, por força desapareceu a unidade numérica com a disparição da unidade específica. Ora, a hipóstase do Verbo de Deus subsiste nas duas naturezas. Por onde, embora Cristo não continuasse a ter um corpo idêntico, quanto à espécie da natureza humana, esse corpo continuou contudo a ser identicamente o mesmo pelo suposto do Verbo de Deus.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A corrupção e a morte não as teve que sofrer Cristo em razão do suposto, tomando-se por suposto a unidade; mas em razão da natureza humana, segundo a qual havia no corpo de Cristo uma diferença entre a morte e a vida.

Art. 6 — Se a morte de Cristo produziu algum efeito para a nossa salvação.

O sexto discute-se assim. — Parece que a morte de Cristo não produziu nenhum efeito para a nossa salvação.

1. — Pois, a morte é uma certa privação a da vida. Ora, a privação, não sendo nenhuma realidade, não tem nenhuma virtude ativa. Logo, nada podia produzir para a nossa salvação.

2. Demais. — A Paixão de Cristo obrou a nossa salvação a modo de mérito. Ora, assim não podia produza-Ia a sua morte; pois pela morte separa-se do corpo e alma, a qual é o princípio do mérito. Logo, a morte de Cristo nada produziu para a nossa salvação.

3. Demais. — O corporal não pode ser a causa do espiritual. Ora, a morte de Cristo foi corporal. Logo, não podia ser a causa espiritual da nossa salvação. Mas, em contrário, diz Agostinho: A morte única do nosso Salvador, isto é, a corpórea, foi a salvação para as duas mortes nossas, a saber, a da alma e a do corpo.

SOLUÇÃO. — De dois modos podemos considerar a morte de Cristo: no seu devir e na sua realização. - Assim, dizemos que a morte de alguém está no seu devir, quando tende para ela, por algum sofrimento natural ou violento. E neste sentido, o mesmo é falar da morte e da Paixão de Cristo. Em tal acepção, pois, a morte de Cristo é a causa da nossa salvação, conforme ao que dissemos ao tratar da Paixão. - Mas a morte de Cristo é considerada como realizada, pelo fato da separação entre o seu corpo e a sua alma. E tal é o sentido em que agora tratamos dessa morte. Ora, nesta acepção, a morte de Cristo não pode ser causa da nossa salvação a modo de mérito, mas só a modo de eficiência; isto é, enquanto que nem pela morte a divindade se separou do corpo de Cristo. Donde, tudo o que se passou com o corpo de Cristo, mesmo depois de separado da alma, foi-nos salutífero, era virtude da divindade que lhe estava unida. - Mas, o efeito de uma causa é propriamente considerado tendo-se em vista a semelhança com ela. Por onde, sendo a morte uma privação da vida própria, o efeito da morte de Cristo deve ser considerado relativamente àremoção dos obstáculos contrários ànossa salvação; a esses são a morte da alma e a do corpo. Por isso, dizemos, que a morte de Cristo destruiu em nós tanto a morte da alma - segundo aquilo do Apóstolo: O qual foi entregue por nossos pecados - como a do corpo, consistente na separação da alma - segundo aquele outro lugar: Flagrada foi à morte na vitória.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A morte de Cristo obrou a nossa salvação em virtude da divindade que lhe estava unida, e não só em razão da morte.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A morte de Cristo, considerada como realizada, embora não tenha obrado a nossa salvação a modo de mérito, operou-a, contudo a modo de eficiência como dissemos.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A morte de Cristo foi, por certo, corporal; mas o seu corpo foi o instrumento da divindade que lhe estava unida, obrando em virtude dela, mesmo enquanto morto.