Suma Teológica

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tertia pars Q.54 →

Da qualidade de Cristo ressurrecto

Em seguida devemos tratar da qualidade de Cristo ressurrecto, E nesta questão discutem-se quatro artigos:

Art. 1 — Se Cristo depois da ressurreição tinha um verdadeiro corpo.

O primeiro discute-se assim. Parece que Cristo depois da ressurreição não tinha um verdadeiro corpo.

1. — Pois, um corpo verdadeiro não pode coexistir com outro num mesmo lugar. Ora, o corpo de Cristo depois da ressurreição coexistiu com outro corpo num mesmo lugar; pois, entrou a ter com os seus discípulos, estando as portas fechadas, como refere o Evangelho. Logo, parece que Cristo, depois da ressurreição não teve um verdadeiro corpo.

2. Demais. — Um corpo verdadeiro não se desvanece aos olhos dos que o vêem, salvo se corromper-se. Ora, o corpo de Cristo desvaneceu-se aos olhos dos discípulos que o contemplavam, como diz o Evangelho. Logo parece que Cristo depois da ressurreição não teve um verdadeiro corpo.

3. Demais. — Todo corpo verdadeiro tem uma figura determinada. Ora, o corpo de Cristo apareceu aos discípulos, em outra forma, como está claro no Evangelho. Logo, parece que Cristo, depois da ressurreição, não tinha um corpo verdadeiramente humano. Mas, em contrário, diz o Evangelho, que tendo Cristo aparecido aos discípulos, eles achando-se perturbados e espantados, cuidavam que viam algum espírito, por pensarem que tinha um corpo, não verdadeiro, mas fantástico. E para desiludi-los Cristo depois acrescentou: Apalpai e vê de que um espírito não tem carne nem ossos como vós vedes que eu tenho. Logo, não tinha um corpo fantástico, mas verdadeiro.

SOLUÇÃO. — Como diz Damasceno, ressurgir é próprio de quem caiu. Ora, o corpo de Cristo caiu pela morte, por se ter dele separada a alma, que era a sua perfeição formal. Por isso, para ser verdadeira a ressurreição de Cristo, era necessário que o mesmo corpo de Cristo de novo se lhe unisse à alma. E como a verdadeira natureza do corpo lhe advém da forma, consequentemente, o corpo de Cristo, depois da ressurreição, tanto foi um corpo verdadeiro, como tinha a mesma natureza de antes. Se, ao contrário o seu corpo fosse fantástico, a ressurreição não teria sido verdadeira, mas aparente.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O corpo de Cristo. depois da ressurreição, não por milagre, mas pela sua condição gloriosa - dizem certos — entrou a ter com os discípulos, estando as portas fechadas, ocupando simultaneamente com outro corpo o mesmo lugar. O fato porém de poder o corpo glorioso, em virtude de uma propriedade que lhe seja inerente, coexistir com outro corpo num mesmo lugar, será discutido mais adiante, quando tratarmos da ressurreição geral. Mas agora, no caso vertente, basta dizermos que não foi pela natureza do corpo de Cristo, mas antes em virtude da divindade que lhe estava unida, que chegou até os discípulos, embora fosse verdade que entrou estando as portas fechadas. Por isso diz Agostinho, num Sermão pascal, que certos disputam e perguntam como, sendo realmente corpo o que morreu na cruz e ressurgiu do sepulcro, pôde entrar estando as portas fechadas? E responde: Se compreenderes o modo, verás que não houve nenhum milagre. O que a razão não alcança a fé nos faz aceitar. E noutro lugar: Ao corpo material, ao qual estava unida a divindade, não podiam portas fechadas constituir um obstáculo; pois, quem nasceu, sem causar detrimento à inviolabilidade da virgindade materna, bem podia também entrar por portas fechadas. E o mesmo diz Gregório numa homilia.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Como dissemos, Cristo ressurgiu para a vida imortal da glória. Ora, por disposição o corpo glorioso é espiritual, isto é, sujeito do espírito, como diz o Apóstolo. Mas, para um corpo ser plenamente sujeito do espírito é necessário que a totalidade da sua ação esteja sujeita àvontade do espírito: Por outro lado, é pela ação do objeto visível sobre a vista, que nós o vemos, como está claro no Filósofo. Por onde, quem quer que tenha um corpo glorificado tem o poder de ser visto quando quiser e, quando não quiser, o de não o ser. Ora, Cristo, não só pela condição do corpo glorioso, mas também por virtude da divindade - que pode tornar milagrosamente invisíveis mesmo os corpos — teve esse poder. Tal o caso de S. Bartolomeu, a quem foi milagrosamente concedido o poder de se tornar visível ou não, conforme o quisesse. E diz a Escritura que Cristo se desvaneceu aos olhos dos discípulos, não por se ter decomposto ou resolvido num ser invisível, mas que, por vontade sua, se lhes desapareceu aos olhares, ou estando ainda presente. ou por ter se separado deles pelo dom da agilidade.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz Severiano num Sermão pascal, ninguém deve pensar que Cristo, com a sua ressurreição, mudou a forma do seu corpo. O que se deve entender da disposição dos membros, pois nada de desordenado e disforme havia no corpo de Cristo, concebido pelo Espírito Santo, que devesse ser corrigido na ressurreição. Nesta, somente recebeu a glória da claridade. Por isso no mesmo lugar se acrescenta: Mas a sua figura se mudou, tornando-se de mortal, imortal; de modo que assim adquiriu uma figura gloriosa, sem perder nada da sua substância real. — Nem contudo apareceu aos discípulos sob forma gloriosa; mas, como no seu poder estava tornar o seu corpo visível ou invisível, assim também tinha o poder de manifestar-se aos olhos dos que o contemplavam sob forma gloriosa, não gloriosa ou ainda mista, ou de qualquer outro modo. Ora, basta uma pequena diferença para parecermos diferentes do que somos.

Art. 2 — Se o corpo de Cristo ressurgiu inteiro.

O segundo discute-se assim. — Parece que o corpo de Cristo não ressurgiu inteiro.

1. — Pois, a carne e o sangue pertencem à integridade do corpo humano. Ora, Cristo parece que não os teve, conforme aquilo do Apóstolo: A carne e o sangue não podem possuir o reino de Deus. Ora, Cristo ressurgiu na glória do reino de Deus. Logo, parece que não tinha carne nem sangue.

2. Demais. — O sangue é um dos quatro humores. Se pois Cristo teve sangue, pela mesma razão também teve os outros humores, donde resulta a corrupção aos corpos dos animais. Donde se seguirá, que o corpo de Cristo era corruptível. O que é inadmissível. Logo, não teve carne nem sangue.

3. Demais. — O corpo de Cristo ressurrecto subiu aos céus. Ora, uma parte do seu sangue é reservado como relíquia em certas Igrejas. Logo, o corpo de Cristo não ressurgiu na integridade de todas as suas partes. Mas, em contrário, o Senhor diz, falando aos discípulos, depois da ressurreição: Um espírito não tem carne nem ossos como vós vedes que eu tenho.

SOLUÇÃO. — Como dissemos, o corpo de Cristo teve, ressurrecto, a mesma natureza, mas uma glória diferente. Por onde, tudo o pertencente ànatureza do corpo humano existiu totalmente no corpo de Cristo ressurrecto. Ora, é manifesto que da natureza do corpo humano fazem parte as carnes, os ossos, os sangues e atributos semelhantes. Por onde, tudo isso existiu no corpo de Cristo ressurrecto; e também integralmente, sem nenhuma diminuição do contrário a ressurreição não seria perfeita, se não se reintegrasse tudo o que se desagregou pela morte. Por isso o Senhor fez aos seus fiéis a seguinte promessa: Até os mesmos cabelos da vossa cabeça, todos eles estão contados. E noutro lugar: Não se perderá um cabelo da vossa cabeça. — Quanto a afirmar que o corpo de Cristo não tinha carne nem ossos nem as demais partes naturais ao corpo humano, isso constitui o erro de Entíquio, bispo da cidade de Constantinopla. Dizia ele que o nosso corpo, na glória da ressurreição, será impalpável e mais subtil que o vento e o ar. E que o Senhor, depois de ter confirmado o coração de seus discípulos, fazendo-os lhe apalpar o corpo, tornou então subtil tudo o que antes nele podia ser tocado. Mas essa doutrina Gregório a refuta no mesmo lugar, pois o corpo de Cristo não sofreu, depois da ressurreição, nenhuma mudança, segundo aquilo do Apóstolo: Tendo Cristo ressurgido dos mortos, já não morre. De modo que o bispo infiel retratou-se na morte, do que disse. Pois, se é inadmissível que Cristo tivesse recebido, na sua concepção, um corpo de outra natureza, por exemplo, celeste, como Valentiniano afirmava, muito mais inadmissível é que, na ressurreição, reassumisse um corpo de natureza diferente, pois que o corpo reassumido na ressurreição, para a vida imortal, foi o mesmo que assumiu, na concepção, para a vida mortal.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Carne e sangue, no lugar citado, não se tomam pela natureza deste e daquela, mas ou pela culpa da carne e do sangue, como diz Gregório; ou pela corrupção da carne e do sangue, porque, no dizer de Agostinho, não havia aí corrupção nem mortalidade da carne e do sangue. Ora, a carne, na sua substância, possui o reino de Deus, conforme o lugar — Um espírito não tem carne nem ossos como vós vedes que eu tenho, Mas a carne, entendida como corruptível, não o possui. Por isso imediatamente o Apóstolo acrescentou as palavras: Nem a corrupção possuirá a incorruptibilidade.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz Agostinho, talvez o tratar-se do sangue dará a ocasião a um esmerilhador mais minucioso de objetar, que se houve sangue no corpo de Cristo ressurrecto, porque não houve também a pituita, isto é, o flegma; porque não o fel amarelo, isto é, a bílis e o fel negro ou a melancolia, cujos quatro humores a ciência médica declara constituídos da natureza da carne? Acrescente-se-lhes o que se quiser, mas evitando acrescentar a corrupção — não vá contaminar-se a integridade e a pureza da fé. Mas Deus pode deixar algumas de suas propriedades a corpos, de natureza visíveis e palpáveis e privá-los contudo de outras, conforme quiser; de sorte que guardem a sua forma exterior sem nenhuma falha ou corrupção, o movimento sem a fadiga, o poder de comer sem a necessidade. de nutrir-se.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Todo o sangue corrido do corpo de Cristo, pertencendo realmente ànatureza humana, ressurgiu com o seu corpo. E o mesmo devemos dizer de todas as partículas realmente pertencentes á natureza humana em sua integridade. Quanto ao sangue conservado por certas Igrejas como relíquias, esse não correu do lado de Cristo; mas é considerado como tendo jorrado milagrosamente de alguma imagem sua, objeto de qualquer violência.

Art. 3 — Se o corpo de Cristo ressurgiu glorioso.

O terceiro discute-se assim. — Parece que o corpo de Cristo não ressurgiu glorioso.

1. — Pois, os corpos gloriosos são refulgentes, segundo aquilo do Evangelho: Resplandecerão os justos, como o sol, no reino de seu Pai. Ora o que torna os corpos resplandecentes é a luz e não a cor. Mas, tendo o corpo de Cristo sido visto sob a espécie de cor, como antes era visto, parece que não foi glorioso.

2. Demais. — O corpo glorioso é incorruptível. Ora, parece que o corpo de Cristo não foi incorruptível. Pois, podia ser apalpado, como ele próprio o disse: Apalpai e vede. E Gregório diz que necessàriamente o que pode corromper-se pode ser apalpado, e apalpado não pode ser o que não se corrompe. Logo, o corpo de Cristo não foi glorioso.

3. Demais. — O corpo glorioso não é animal, mas espiritual, como está claro no Apóstolo. Ora, parece que o corpo de Cristo, depois da ressurreição, era animal, pois comeu e bebeu com os discípulos, como se lê no Evangelho. Logo, parece que o corpo de Cristo não era glorioso. Mas, em contrário, o Apóstolo: Reformará o nosso corpo abatido, para o fazer conforme ao seu corpo glorioso.

SOLUÇÃO. — O corpo de Cristo ressurgiu glorioso e três razões o demonstram. - Primeiro, porque a ressurreição de Cristo foi o exemplar e a causa da nossa, como se lê no Apóstolo. Ora, os santos, ressurrectos, terão corpos gloriosos, como diz ainda o Apóstolo: Semeia-se em vileza, ressuscitará em glória. Ora, sem a causa mais digna que o causado, e o exemplar, que o exemplado, com muito maior razão o corpo de Cristo ressurgiu glorioso. — Segundo, porque pelas humilhações da Paixão mereceu a glória da ressurreição. Por isso ele próprio o dizia: Agora presentemente está turbada a minha alma, o que concernia à Paixão. E no que acrescenta - Pai, glorifica o teu nome, pede a glória da ressurreição. — Terceiro, porque, como dissemos a alma de Cristo, desde o princípio da sua concepção, era gloriosa pela fruição perfeita da divindade. E só por exceção se deu, como dissemos, que a glória da alma não redundasse para o corpo, a fim de cumprir-se, pela sua Paixão, o mistério da nossa redenção. Por onde, consumado o mistério da Paixão e da morte de Cristo, imediatamente a alma derivou a sua glória para o corpo reassumido na ressurreição; e assim o seu corpo se lhe tornou glorioso.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Tudo o que é recebido por outro ser é recebido ao modo do recipiente. Ora, derivando a glória do corpo, da alma, como diz Agostinho, a refulgência ou a claridade do corpo glorificado se funda na cor natural ao corpo humano; assim como o vidro diversamente colorido torna-se resplendente pela iluminação do sol, em dependência da sua cor. Ora, assim como no poder do homem glorificado está tornar o seu corpo sensível ou não, conforme dissemos, assim no seu poder está o ser ou não vista a sua resplandecência. Por isso pode ser visto na sua cor, sem ter nenhuma claridade. E foi desse modo que Cristo apareceu aos discípulos depois da ressurreição.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Um corpo é susceptível de ser tocado não só em razão da sua resistência como também em razão da sua espessura. Ora, da rarefação e da espessura resultam o peso e a levidão, a calidez e a frieza e outras qualidades contrárias, que são os princípios da corrupção dos corpos elementares. Por onde, o corpo susceptível de ser apalpado pelo tato humano é naturalmente corruptível. E não podemos considerar como capaz de ser tocado um corpo, como o celeste, resistente ao tato, mas cuja disposição não implica as referidas qualidades, que os objetos próprios do tato humano. Ora, o corpo de Cristo, depois da ressurreição foi realmente composto de elementos, tendo em si qualidades tangíveis como o requer a natureza do corpo humano. Por isso era naturalmente susceptível de ser tocado; e se nada mais tivesse, além da natureza do corpo humano, também teria sido corruptível. Mas tinha um atributo que o tornava incorruptível; e esse não era, certo, a natureza de corpo celeste, como alguns dizem, de cuja opinião mais adiante trataremos; mas, a glória redundante da alma bem-aventurada. Pois, como diz Agostinho, Deus dotou a alma de uma tão poderosa natureza, que redundasse, da sua pleníssima beatitude, para o corpo, a plenitude da saúde, isto é, o vigor da incorrupção. Por onde, como diz Gregório se demonstra que o corpo de Cristo, depois da ressurreição, não mudou de natureza, mas teve uma glória diferente.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz Agostinho, o nosso Salvador, depois da ressurreição, revestido de uma carne espiritual, mas verdadeira, tomou comida e bebida com os discípulos; não que precisasse de alimentos, mas para manifestar que tinha o poder de fazê-lo. Pois, como diz Beda, de um modo a terra seca absorve a água e de outro, o raio candente do sol; aquela por indigência, este pela intensidade. Assim, Cristo comeu, depois da ressurreição, não que precisasse de alimento, mas para, desse modo, manifestar a natureza do corpo ressurrecto. Mas daqui não se segue que tivesse um corpo de natureza animal, necessitado de alimentar-se.

Art. 4 — Se o corpo de Cristo devia ressurgir com cicatrizes.

O quarto discute-se assim. — Parece que o corpo de Cristo não devia ressurgir com cicatrizes.

1. — Pois, diz o Apóstolo, que os mortos ressurgirão incorruptíveis. Ora, tanto as cicatrizes como as feridas implicam de certo modo corrupção e defeito. Logo, não devia Cristo, autor da ressurreição, ressurgir com cicatrizes.

2. Demais. — O corpo de Cristo ressurgiu íntegro. Ora, feridas abertas contrariam a integridade do corpo, pois causam nele descontinuidade. Por onde, parece que não devia o corpo de Cristo conservar quaisquer aberturas de feridas, embora nele se conservassem certos sinais delas, suficientes para percebê-las a vista à qual Tomé acreditou, ele a quem foi dito: Tu creste, Tomé, porque me viste.

3. Demais. — Damasceno diz: Depois da ressurreição de Cristo, certas causas lhe atribuímos, como as cicatrizes em sentido próprio, não porém segundo a natureza, senão só excepcionalmente, para significar que o mesmo corpo que sofreu foi também o que ressurgiu. Ora, cessada a causa, cessa o efeito. Por onde, parece que uma vez certificados os discípulos da sua ressurreição, não era já necessário que conservasse as cicatrizes. Mas não convinha à imutabilidade da sua glória, que assumisse qualquer causa que perpetuamente nele não existisse. Logo, parece que não devia, ressurgido, assumir um corpo com cicatrizes. Mas, em contrário, o Senhor diz a Tomé: Mete aqui o teu dedo e vê as minhas mãos; chega também a tua mão e mete-a no meu lado.

SOLUÇÃO. — Devia a alma de Cristo, na ressurreição, reassumir o seu corpo com as cicatrizes. — Primeiro, por causa da glória mesma de Cristo. Assim, como diz Beda, conservou as cicatrizes, não pelas não poder fazer desaparecer, mas a fim de manifestar a todos e perpetuamente o triunfo da sua vitória. E por isso diz Agostinho, que talvez no reino celeste veremos nos corpos dos mártires as cicatrizes das feridas, que sofreram pelo nome de Cristo. O que lhes constituirá, não uma deformidade, mas uma dignidade; e então há de refulgir neles a beleza da virtude existente no corpo, mas sem ser do corpo. — Segundo, para confirmar o coração dos discípulos na fé da sua ressurreição. — Terceiro, para mostrar sempre, ao orar ao Pai por nós, que gênero de morte sofreu pelo homem. — Quarto, para relembrar incessantemente àqueles a quem resgatou com a morte, a misericórdia de que usou para com eles. — E enfim, para também desse modo mostrar, no juízo, aos condenados, quão justamente o foram. Pois, como diz Agostinho, Cristo sabia porque queria conservar no seu corpo as cicatrizes. Porque, assim como as mostrou a Tomé, que não queria crer senão tocando-as e vendo-as, assim também há de mostrar, mesmo aos seus inimigos, as suas feridas, para que a Verdade, ao confundi-Ias, lhes declare: Eis o homem a quem crucificaste. Vedes as feridas que me causastes. Reconhecei o lado que trespassastes — aberto por vós e por causa vossa, sem contudo nele terdes querido entrar.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Essas cicatrizes que permaneceram no corpo de Cristo, não implicam nenhuma corrupção nem qualquer defeito, mas um maior cúmulo de glória, como uns sinais da sua virtude. E nesses lugares mesmo das feridas se manifestará um esplendor especial.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Embora essas feridas abertas impliquem uma certa solução de continuidade, tudo isso é recompensado porém por um maior esplendor da glória, de modo que o corpo longe de perder da sua integridade, mais perfeito se tornará. Tomé, porém não só viu, mas também tocou as feridas; porque, como diz Leão Papa, bastava-lhe à sua fé ter insto o que vira; mas foi em nosso proveito o ter tocado aquele a quem via.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Cristo quis que as cicatrizes permanecessem no seu corpo, não só para certificar a fé dos discípulos, mas ainda por outras razões. Donde se conclui que essas cicatrizes sempre lhe permaneceram no corpo. Pois, diz Agostinho: Creio que o corpo do Senhor está no céu como existia quando a ele subiu. E Gregório diz, se alguma causa podia mudar-se no corpo de Cristo, depois da ressurreição, o Senhor podia voltar a morrer, depois de ressurrecto — contra a afirmação verídica de Paulo. Mas quem com estultície ousará dizê-lo, senão quem negar a verdadeira ressurreição da carne? Por onde é claro que as cicatrizes que Cristo mostrava no seu corpo, depois da ressurreição, nunca mais se lhe deliram dele.