Em seguida devemos tratar da integridade do corpo dos ressurrectos. E nesta questão discutem-se cinco artigos:
O primeiro discute-se assim. ─ Parece que nem todos os membros do corpo humano ressurgirão.
1. ─ Pois, removido o fim, é inútil lançar mão dos meios a ele conducentes. Ora, o fim de cada membro é o seu ato. Mas nada há de vão nas obras divinas; e de certos membros o homem não mais se servirá depois da ressurreição, sobretudo dos genitais, porque então, nem as mulheres terão maridos, nem os maridos mulheres. Logo, parece que nem todos os membros ressurgirão.
2. Demais. ─ Os intestinos também são partes do corpo. Ora, não ressurgirão. Pois, não poderão ressurgir cheios das imundícias que contêm. Nem vazios, porque não há vácuo em a natureza. Logo, nem todas as partes do corpo ressurgirão.
3. Demais. ─ O corpo ressurgirá para ser premiado pelas obras que a alma praticou por meio dele. Ora, o membro amputado pelo furto cometido, a um ladrão, que porém fez depois penitência e se salvou, não pode ser remunerado na ressurreição ─ nem por um bem praticado, pois para tal não cooperou; nem pelo mal, pois a pena imposta a um membro redundaria em pena do homem. Logo, nem todos os membros do ressurrecto ressurgirão. Mas, em contrário. ─ Mais verdadeiramente constituem a natureza humana os outros membros, que os cabelos e as unhas. Ora, estes restituir-se-ão aos resurrectos, como diz o Mestre. Logo e com maior razão, os outros membros.
2. Demais. ─ As obras de Deus são perfeitas, diz a Escritura. Ora, a ressurreição será obra divina. Logo, o ressurrecto se reconstituirá perfeito em todos os membros.
SOLUÇÃO. ─ Como diz Aristóteles, a alma exerce, no corpo, não só a função de forma e de fim, mas também a de causa eficiente. Pois, a alma está para o corpo como a arte para o artefato, no dizer do Filósofo. Ora, tudo o que explicitamente se mostra no artefato estava já contido implícita e originariamente na arte. Assim também tudo o que se revela nas partes do corpo, já está original e de certo modo implicitamente na alma. Mas, assim como a obra artística não seria perfeita se algo lhe faltasse do que a arte contém, assim nem o homem poderia ser perfeito se não se manifestasse externamente no corpo tudo o contido implicitamente pela alma. Nem então o corpo corresponderia à alma de maneira plenamente proporcionada. Ora, na ressurreição o corpo humano há de corresponder totalmente à alma, pois não ressurgirá senão na sua relação com a alma racional. Logo, o homem há de ressurgir perfeito, pois se reconstituirá para receber a sua última perfeição. Portanto, todos os membros que o corpo humano tiver nesta vida hão de reconstituir-se na ressurreição.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Os membros podem considerar-se a dupla luz, nas suas relações com a alma: ou na relação de matéria para forma, ou na de instrumento para agente. Ora, a mesma relação existe entre todo o corpo e toda a alma, e das partes entre si, como ensina Aristóteles. Se, pois, considerarmos os membros na primeira acepção, o fim deles não é a operação, mas antes, a perfeição da espécie, necessária também depois da ressurreição. Se, porém, os considerarmos na segunda acepção, então tem como fim a operação. Mas daí não se segue que o instrumento seja inútil por não poder exercer a sua operação própria; pois, o instrumento serve não só para executar a ação do agente, mas também para mostrar a sua virtude própria. Por onde, há de a virtude das potências da alma se revelar mediante instrumentos corpóreos, embora estes nunca sejam usados, para assim manifestar-se a sabedoria de Deus.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Os intestinos ressurgirão com o corpo, assim como os outros órgãos. E estarão cheios não de imundos excrementos, mas de humores nobres.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Os atos pelos quais merecemos não pertencem, propriamente falando, às mãos nem aos pés, mas ao homem total; assim como uma obra de arte não se atribui ao instrumento, mas ao artífice. Embora portanto um membro mutilado antes da penitência, não tenha cooperado ao estado glorioso merecido depois da ressurreição, contudo o homem completo é o que merece ser premiado, pois serviu a Deus com tudo o que tinha.
O segundo discute-se assim. ─ Parece que os cabelos e as unhas não ressurgirão com o corpo.
1. ─ Pois, assim como os cabelos e as unhas são gerados pela superfluidade da nutrição, assim também a urina, o suor e fezes semelhantes. Ora, estas não ressurgirão com o corpo. Logo, nem os cabelos e as unhas.
2. Demais. ─ Entre as outras superfluidades geradas pela alimentação, constitui por excelência a natureza humana, em sua realidade, o sêmen, superfluidade necessária. Ora, o corpo humano não ressurgirá com o sêmen. Logo e com muito maior razão, não hão de ressurgir os cabelos e as unhas.
3. Demais. ─ Nenhuma perfeição tem a alma racional que não tenha também a alma sensível. Ora, os cabelos e as unhas não tem a perfeição da alma sensível, pois por eles não sentimos, como o explica Aristóteles. Logo, como o corpo não ressurgirá senão para as perfeições da alma racional, parece que os cabelos e as unhas não ressurgirão. Mas, em contrário, o Evangelho: Não se perderá um cabelo da vossa cabeça.
2. Demais. ─ Os cabelos e as unhas foram dados como ornato para o homem. Ora, os corpos humanos, sobretudo os dos eleitos, devem ressurgir com todos os seus ornatos. Logo, devem ressurgir com os cabelos.
SOLUÇÃO. ─ A alma está para o corpo animado como a arte para o artificiado, e para as partes dele como a arte para os seus instrumentos; por isso o corpo animado se chama orgânico. Ora, a arte usa de certos instrumentos para executar a obra intencionada; e esses são os que lhe servem primariamente à intenção. Mas também se serve de outros instrumentos para a conservação dos instrumentos principais; e esses lhe servem secundariamente à intenção. Assim, a arte militar se serve da espada para a guerra; e da bainha, para a conservação da espada. Do mesmo modo, das partes do corpo animado umas ─ como o coração, o fígado, as mãos e os pés ─ se ordenam a executar as operações da alma; outras porém, à conservação das demais partes, como as folhas servem para cobrir os frutos. Assim também os cabelos e as unhas servem para resguardar as outras partes do corpo humano. Por isso pertencem secundariamente à perfeição do corpo humano, embora não primariamente. E como o corpo ressurgirá em toda a perfeição da sua natureza, por isso também os cabelos e as unhas hão de ressurgir com ele.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ A natureza expulsa aquelas superfluidades que para nada são úteis e portanto não contribuem para a perfeição do corpo humano. Mas procede diferentemente com aquelas superfluidades que conserva para a geração dos cabelos e das unhas, de que precisa para a conservação dos membros.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ O sêmen não é necessário, como os cabelos e as unhas, para a perfeição do indivíduo, mas só para a da espécie.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Os cabelos e as unhas se nutrem e crescem; por onde é claro que participam de uma certa, perfeição. O que não poderia dar-se se não fossem de algum modo partes perfeitas da alma. E como o homem não tem senão uma alma única, que é a racional, resulta que as unhas e os cabelos recebem da alma racional a sua perfeição. Embora não a ponto de participarem da atividade sensível, como também se dá com os ossos, dos quais sabemos que ressurgirão e que pertencem à integridade do indivíduo.
O terceiro discute-se assim. ─ Parece que os humores não ressurgirão com o corpo. 1 ─ Pois, o Apóstolo diz: A carne e o sangue não podem possuir o reino de Deus. Ora, o sangue é o humor mais principal. Logo, não ressurgirá com o corpo dos bem-aventurados, que possuirão o reino de Deus. Logo e com maior razão, não hão de ressurgir os outros humores.
2. Demais. ─ Os humores servem para reparar as perdas do corpo. Ora, depois da ressurreição o corpo nenhuma perda sofrerá. Logo, o corpo não ressurgirá com os humores.
3. Demais. ─ O que está no corpo humano, em via de ser gerado, ainda não recebeu da alma racional a sua perfeição. Ora, os humores, sendo carne e ossos em potência, estão ainda em via de ser gerados. Logo, ainda não receberam a sua perfeição da alma racional. Ora, o corpo humano não é destinado à ressurreição senão enquanto aperfeiçoado pela alma racional. Logo, os humores não ressurgirão com ele. Mas, em contrário. ─ O que pertence à constituição do corpo humano ressurgirá com ele. Ora, tais são os humores, conforme Agostinho, que diz: O corpo consta de órgãos, os órgãos de partes similares, e estas de humores. Logo, os humores ressurgirão com o corpo.
2. Demais. ─ A nossa ressurreição será conforme à de Cristo. Ora, Cristo ressurgiu com o sangue; aliás no sacramento do Altar o vinho não se lhe transubstanciaria no sangue. Logo, também o nosso corpo ressurgirá com sangue. E pela mesma razão, com os outros humores.
SOLUÇÃO. ─ Pela razão já dada, tudo o pertencente à integridade da natureza humana, no ressurrecto, ressurgirá. Logo, há de ressurgir com o corpo aquele líquido pertencente à integridade da natureza humana. Ora, no corpo há três espécies de líquidos. Uns, não contribuem para a perfeição do Indivíduo. Ou por estarem, como a urina, o suor, o puz e outros, em via de corrupção e serem por isso expulsos; ou pelos ordenar a natureza para a conservação da espécie em outro indivíduo, quer pelo ato da geração, como o sêmen. quer pela função nutritiva, como o leite. E nenhum desses líquidos ressurgirá, por não pertencerem a perfeição do indivíduo ressurrecto. A segunda espécie de líquidos é a dos que ainda não chegaram à última perfeição que a natureza produz no indivíduo, mas é ordenada a ela pela natureza. ─ E esta espécie é dupla. Porque certos líquidos tem uma forma determinada inclusa entre as partes do corpo; assim o sangue e os outros três humores, que a natureza ordenou a formar os órgãos, pela geração; mas tem certas formas determinadas, como também as outras partes do corpo. E por isso com essas outras ressurgirão. ─ Outros líquidos porém estão em via de passar de uma forma para outra, i. é, da forma de humor para a de órgão. E esses não ressurgirão. Porque depois da ressurreição cada parte do corpo terá a sua forma fixada, de modo que não poderá transformar-se em outra. Por isso não ressurgirá aquele líquido que está no ato mesmo de passar de uma forma para outra. E esses podemos considerá-los num duplo estado. Ou enquanto estão no princípio da transformação; e então se chama ros, que é o líquido existente nos orifícios das pequenas veias, ou enquanto já numa transformação adiantada e começando a mudar de forma, e então se chamam cambium. Ora, em nenhum desses estados ressurgirão. A terceira espécie de líquido é o que já chegou à perfeição última visada pela natureza, no corpo do indivíduo; já transformado e incorporado nos membros. E essa se chama gluten. E fazendo parte da substância dos membros, ressurgirá, como ressurgirão os demais órgãos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Carne e sangue, nas palavras citadas do Apóstolo, não se devem tomar pela substância da carne e do sangue, mas pelas obras da carne e do sangue, que são as obras do pecado ou da vida animal. ─ Ou, segundo interpreta Agostinho, carne e sangue aí se tomam pela corrupção agora dominante na carne e no sangue. Por isso o Apóstolo acrescenta as palavras: Nem a corrupção possuirá a incorruptibilidade.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Os membros que servem à geração concorrerão, depois da ressurreição, para a integridade da natureza humana e não exercerão mais os atos que exercem nesta vida. Assim também os humores existirão no corpo, não para restaurar as perdas, mas para contribuírem à integridade da natureza humana e à manifestação da virtude dela.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Assim como os elementos estão em via para a geração em relação aos corpos mistos, por serem a matéria destes e não por estarem sempre se transformando para os produzir, o mesmo se dá com os humores em relação aos membros. Por isso, assim como os elementos tem nas partes do universo as suas formas determinadas, razão por que lhe constituem a perfeição, bem como os corpos mistos, assim também os humores, como as outras partes, fazem parte da perfeição do corpo humano, embora não alcancem, como as outras partes, a perfeição total; nem tenham os elementos formas assim perfeitas como os mistos. Ora, assim como todas as partes do universo recebem de Deus a sua perfeição, mas não igualmente, senão cada qual a seu modo, assim também os humores são de certa maneira aperfeiçoados pela alma racional, mas não do mesmo modo por que o são as partes mais perfeitas.
O quarto discute-se assim. ─ Parece que nem tudo o pertencente verdadeiramente à natureza humana ressurgirá com o corpo. 1 ─ Pois, a alimentação converte-se verdadeiramente em a natureza humana. Ora, a carne do boi e dos outros animais nos servem de alimento. Se portanto ressurgir tudo quanto realmente nos constituiu a natureza, ressurgirá também a carne do boi e a dos outros animais. O que é inadmissível.
2. Demais. ─ A costela de Adão, que serviu para formar Eva, fazia realmente parte dele como a nossa, de nós. Ora, essa costela não ressurgirá em Adão, mas em Eva; aliás, Eva não ressurgiria, que foi formada da costela de Adão. Logo, não ressurgirá tudo quanto realmente fazia parte da natureza humana.
3. Demais. ─ Não pode uma mesma causa ressurgir em diversos homens. Ora, pode acontecer que uma mesma causa pertencesse realmente à natureza humana em diversos homens; assim se alguém se nutriu de carne humana, que lhe veio a fazer parte da substância. Logo, não ressurgirá em nós tudo quanto realmente fez parte da nossa natureza.
4. Demais. ─ Se se responder que a carne ingerida por manducação não fez total e realmente parte da natureza, sendo então possível ressuscitar uma parte dela em um e outra em outro, redarguimos o seguinte. Real e principalmente pertence à natureza humana o que foi herdado dos pais. Ora, quem só se nutrisse de carne humana e viesse a gerar um filho, necessariamente o que o filho recebeu do pai fazia parte da carne dos outros homens, que seu pai comeu; porque o sêmen é formado pelo supérfluo dos alimentos, segundo o Filósofo o prova. Logo, o que fizer realmente parte da natureza humana nessa criança fez também realmente parte da natureza humana de outros homens cujas carnes comeu o pai.
5. Demais. ─ Se se disser que aquilo que fazia realmente parte da natureza humana, na carne dos corpos humanos comidos, não se transforma em sêmen, senão aquilo que não fazia realmente parte dessa natureza, respondemos em contrário o seguinte. Suponhamos que alguém se alimentasse só do embrião, que nada contém que não constitua realmente a natureza humana, pois, tudo o existente nele vem dos pais. Se, portanto, o supérfluo do alimento se converte no sêmen, por força aquilo que encerrava realmente da natureza humana o embrião, que também há de ressurgir depois de ter recebido a alma racional, isso fará também realmente parte da natureza humana da criança gerada de tal sêmen. E assim, como uma causa não pode ressurgir em dois corpos, em nenhum poderá ressurgir tudo o que fazia realmente parte da natureza humana. Mas, em contrário. ─ Tudo o que realmente fez parte da natureza humana recebeu da alma racional a sua perfeição. Ora, o corpo humano é destinado a ressurgir por ter recebido da alma racional a sua perfeição. Logo, em cada um ressurgirá tudo o que realmente lhe fez parte da natureza humana.
2. Demais. ─ Se um corpo humano for privado de algo que realmente lhe fazia parte da sua natureza humana, já não será perfeito. Ora, toda imperfeição do corpo desaparecerá com a ressurreição; salvo no dos eleitos, a quem foi prometido que não se lhes perderá um cabelo da cabeça. Logo, em cada corpo ressurgirá tudo o que realmente lhe fazia parte da natureza humana.
SOLUÇÃO. ─ Todas as cousas tem com a verdade a mesma relação que tem com o ser, diz Aristóteles; pois, verdadeira é a causa que é tal como aparece a quem atualmente a vê. E por isso diz Avicena, que a verdade de uma cousa é uma propriedade constante do seu ser. Assim sendo, diremos que real e essencialmente pertence a natureza humana o que propriamente lhe pertence ao ser. E isso é o que lhe participa da forma; assim como verdadeiro ouro se chama ao que tem a forma verdadeira do ouro, da qual lhe resulta o seu ser próprio. Para sabermos, pois, o que verdadeiramente constitui a natureza humana, devemos saber que há sobre esta questão três opiniões. Assim, uns ensinaram que nada começa verdadeiramente a existir de novo em a natureza humana; mas tudo o que verdadeiramente lhe pertence, pertenceu-lhe total e verdadeiramente desde a sua instituição. E isso por si mesmo se multiplica, destacando-se do gerador o sêmen que vai formar o filho; e neste também se multiplica essa parte destacada do pai e chega ao desenvolvimento perfeito pelo crescimento, e assim por diante; sendo assim que se multiplicou todo o gênero humano. Por onde, segundo esta opinião, tudo o gerado dos alimentos, embora pareça ter a espécie da carne ou do sangue, não pertence contudo verdadeiramente à natureza humana. Outros porém opinaram que algum acréscimo verdadeiramente se faz em a natureza humana, pela transformação natural do alimento no corpo humano, considerada a realidade da natureza humana especificamente, a cuja conservação se ordena o ato da faculdade genésica. Se porém considerarmos essa natureza no indivíduo, a cuja conservação e perfeição se ordena o ato da função nutritiva, nenhum acréscimo faz a alimentação que pertença primariamente, senão só secundariamente, à verdadeira natureza humana desse indivíduo. Ensinam então que a natureza humana, verdadeira, primária e principalmente, consiste numa umidade radical, donde procede a constituição primeira do gênero humano. O que porém se converte, de alimento, verdadeiramente em carne e em sangue, não constitui principal e verdadeiramente, senão só secundariamente, a natureza desse indivíduo; mas pode verdadeira e principalmente constituir a natureza de outro indivíduo, gerado do sêmen do primeiro. Pois, consideram o sêmen como o supérfluo do alimento, quer adicionado a certos elementos pertencentes primária e verdadeiramente à natureza humana do gerador, como certos dizem, ou sem nenhuma adição dessa espécie, como pretendem outros. De modo que a umidade nutritiva em um se: torna umidade radical no outro. A terceira opinião professa que alguma causa começa a existir de novo, principal e verdadeiramente, em a natureza humana, mesmo individualmente considerada. Porque não se pode fazer nenhuma distinção de partes do corpo humano, de acordo com a qual haja certas determinadas, que hão de necessariamente permanecer durante toda a vida; mas qualquer parte que se considere em especial é indiferente a permanecer sempre no que tem de específica; mas desaparecer e retornar à existência pelo que tem de material. E assim, a umidade nutritiva não se distingue da radical pelo seu princípio, de modo que chamássemos radical ao gerado do sêmen, e nutritivo ao gerado do alimento. Mas se distingue, antes, pelo seu termo, chamando-se então radical ao que alcança o termo da geração pelo ato da virtude genésica ou também da nutritiva; e denominando-se nutritivo o que ainda não tendo atingido esse termo, está em via de nutrir. Essas três opiniões são mais plenamente examinadas e discutidas pelo Mestre no livro 2 das Sentenças. Não devemos por isso repeti-lo aqui senão enquanto vem a propósito. Devemos, pois, saber que segundo se adapta uma dessas três opiniões, diferente será a resposta a dar à questão formulada acima. Assim, a primeira opinião, por via da multiplicação que admite, pode explicar a perfeição verdadeira da natureza humana, tanto quanto ao número dos indivíduos como quanto ao crescimento próprio de cada um, sem recorrer ao gerado pela alimentação. O que não se acrescenta ao corpo senão para resistir à consumpção que poderia provir da ação do calor natural, como à prata se acrescenta o chumbo a fim de não se consumir liquefeita. Ora, na ressurreição há de a natureza humana reconstituir-se na sua perfeição, nem o calor natural terá então por função consumir a umidade natural. Por isso nenhuma necessidade haverá de ressurgir com o corpo nada de gerado por alimentação. Mas só ressurgirá aquilo que verdadeiramente fazia parte da natureza humana do indivíduo, e que a separação e a multiplicação levaram à perfeição referida, em o número e quantidade dos indivíduos. Quanto à segunda opinião, admitindo que o gerado por nutrição é necessário ao crescimento perfeito do indivíduo e a multiplicação resultante da geração, é levada forçosamente a fazer ressurgir certas cousas das produzidas no corpo pelo alimento; mas não todas, senão só as necessárias à perfeita reintegração da natureza humana em todos os seus indivíduos. Por isso ensina essa opinião que tudo o que constituía substancialmente o sêmen ressurgirá no corpo de tal sêmen gerado; por isso era o que principal e verdadeiramente lhe constituía a natureza humana. Quanto ao que se lhe acrescentou depois pela nutrição, isso ressurgirá na medida necessária à plenitude do crescimento; e não tudo, porque não lhe pertence verdadeiramente à natureza humana senão enquanto esta, como natureza, disso precisa para o crescimento perfeito. Mas como essa umidade nutritiva passa e volta, a reconstituição do corpo ressurrecto se fará na ordem seguinte. O que constituía primariamente a substância do corpo humano será totalmente restaurado; o que se lhe acrescentou em segundo, em terceiro lugar e assim por diante será refeito o quanto necessário para reintegrar-lhe o crescimento. E por duas razões. Primeiro, porque o acrescentado o foi para compensar as perdas anteriores; e assim não pertence principal e verdadeiramente à natureza humana como as cousas precedentes. Segundo, porque a adjunção de uma umidade estranha à umidade primeira radical faz com que o todo composto não participe tão perfeita e verdadeiramente da espécie como dela participa a substância primeira do corpo. E o Filósofo dá o exemplo da água misturada com vinho, que sempre enfraquece as qualidades deste, até acabar pelo transformar em água. Por onde, assim como a segunda água, embora apresente ainda a aparência do vinho, contudo não lhe participa da espécie tão perfeitamente como a água que em primeiro lugar foi nele posta; assim também parte do alimento posteriormente convertido em carne, não a forma especificamente de modo tão perfeito como o alimento que primeiro nela se converteu. E assim não constitui verdadeiramente a natureza humana nem participará da ressurreição. Por onde é claro que esta opinião admite a total ressurreição do que principal e verdadeiramente constitui a natureza humana; mas não a total ressurreição de tudo o que a constitui verdadeira mas secundariamente. A terceira opinião enfim em parte difere da segunda e em parte com ela convém. Difere em admitir que tudo o que tem forma de carne e de ossos pertence verdadeiramente e pela mesma razão à natureza humana. Porque não distingue, com a segunda opinião, entre o determinadamente permanente no homem durante todo o tempo da sua vida e que em si pertenceria primária e verdadeiramente a natureza humana; e o que, passando e tornando a voltar, pertenceria verdadeiramente a essa natureza só para o pleno desenvolvimento dela, e não pelo seu ser específico primário. Mas admite, que todas as partes não geradas contra a intenção da natureza pertencem verdadeiramente à natureza humana, pelo que tem de específico, porque como tais são permanentes. Mas não pelo que tem de material, porque como tais desaparecem e voltam, indiferentemente. De modo que também entendamos que se dá com as partes de cada homem em particular o que se passa com a população de uma cidade, onde aos que a deixam pela morte outros lhes vem ocupar o lugar; por isso as partes dela fluem e refluem materialmente, mas formalmente permanecem, porque nos mesmos ofícios e ordens os que partiram são substituídos por outros, o que nos leva a dizer que a república permanece numericamente a mesma. Também o mesmo se dá quando umas partes desaparecendo outras se lhes substituem, na mesma figura e situação; e assim todas vão e voltam materialmente, mas permanecem especificamente, não deixando por isso de permanecer o homem individualmente o mesmo. Enfim a terceira opinião convém com a segunda por admitir que as partes acrescidas em segundo lugar não constituem tão perfeita e verdadeiramente a espécie, como as que vieram em primeiro lugar. E assim o mesmo, que a segunda opinião diz ressurgir no homem, também o diz a terceira, mas não exatamente pela mesma razão. Pois afirma que ressurgirá tudo o gerado do sêmen, não por pertencer, por uma outra razão, à verdadeira natureza humana, do que aquilo que se lhe acresceu posteriormente; mas por participar mais perfeita e verdadeiramente da espécie. Ordem essa admitida pela segunda opinião em relação ao que se acrescenta por efeito do alimento. No que também esta opinião concorda com a terceira.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Os seres naturais não são tais pela matéria, mas pela forma. Por onde, embora a matéria, antes unida à forma da carne bovina, ressurja no homem sob a forma de carne humana, daí não resulta que ressurja a carne do boi, mas a do homem. Do contrário, também podia concluir-se que ressurgiria o barro de que foi formado o corpo de Adão. Contudo, a primeira opinião concede a essa objeção.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Essa costela não pertencia à perfeição individual de Adão, mas era ordenada à multiplicação da espécie. Por isso não ressurgirá em Adão, mas em Eva, assim como o sêmen não ressurgirá no gerador, mas no gerado.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Se se adota a primeira opinião é fácil responder. Pois, as carnes ingeridas não fizeram nunca verdadeiramente parte da natureza humana de quem as comeu, mas fizeram realmente parte da natureza humana daquele curas carnes foram comidas. Por isso ressurgirão com este e não com aquele. Mas se adotarmos a segunda opinião e a terceira diremos que cada cousa ressurgirá naquele em quem mais perfeitamente participou da virtude da espécie. E se participou igualmente em ambos ressurgirá naquele em que existiu primeiro, pois neste primeiro se ordenou à ressurreição pela união com a sua alma racional. Por onde, se as carnes ingeridas continham alguma superfluidade que não pertencessem verdadeiramente à natureza humana do primeiro, poderá ressurgir no segundo. Mas se não continham nenhuma superfluidade. ressurgirá no primeiro o que lhe pertencia à ressurreição, e não no segundo. E para reparar esta perda no último, seria tomada uma parte das suas carnes em que se converteram outros alimentos, ou se nunca se nutriu de outra causa a não ser de carne humana, o poder divino suprirá de outro modo no suficiente à perfeição do crescimento, assim como supre nos mortos antes da idade perfeita. E tudo isso não causa nenhum detrimento à identidade numérica, do mesmo modo que não a destrói a disparição e a reaparição material das partes.
RESPOSTA À QUARTA. ─ De acordo com a primeira opinião é fácil resolver, pois afirma que o sêmen não provém de alimento supérfluo. Por isso a carne comida não se transforma no sêmen que causa a geração. Mas de acordo com as outras duas opiniões, devemos responder que não é possível as carnes comidas terem-se convertido totalmente no sêmen; porque, de uma longa depuração do alimento resulta a decocção do sêmen, que é o supérfluo do último alimento. Ora, o que das carnes ingeridas se converte em esperma, mais verdadeiramente pertence à natureza humana de quem dela nasce, do que daquele de cujas carnes foi gerado. Por onde, segundo a regra anteriormente dada, o que se converte em sêmen ressurgirá naquele que desse sêmen nasceu; e o que resta da matéria ressurgirá naquele que ingeriu as carnes de que o sêmen foi gerado.
RESPOSTA À QUINTA. ─ Os embriões não se incluem na ressurreição antes de animados pela alma racional. E nesse estado recebe da alimentação muitas causas que se acrescentam à substância do esperma, porque o feto é nutrido no seio materno. Quem, pois, se nutre de embriões e engendra do supérfluo dessa alimentação, o que resultar da substância do sêmen ressuscitará naquele que deste foi gerado. Salvo se essa substância contiver alguma cousa que pertencesse à substância seminal daqueles que forneceram as carnes ingeridas; pois, então, elas ressuscitarão no primeiro que formou a substância e não no segundo que as comeu. Quanto ao resíduo das carnes comidas, que se não converteram em sêmen, ressuscitaria no primeiro, e a virtude divina supriria o que faltasse a um e a outro. Mas esta objeção não cria nenhuma dificuldade à primeira opinião, que não admite ser o sêmen formado do supérfluo dos alimentos; mas em compensação, presta o flanco a muitas outras objeções, como o mostra o Mestre.
O quinto discute-se assim. ─ Parece que tudo o que as partes do corpo humano tinham de material ressuscitará.
1. ─ Pois, menos são susceptíveis de ressurreição os cabelos que os outros órgãos. Ora, toda a matéria dos cabelos ressuscitará, embora não nos cabelos, ao menos nas outras partes do corpo, como diz Agostinho. Logo e com maior razão, tudo o que de material encerravam os outros órgãos ressurgirá.
2. Demais. ─ Assim como as partes específicas do corpo são aperfeiçoadas pela alma racional, assim também as partes materiais. Ora, o corpo humano é destinado à ressurreição por ter sido aperfeiçoado pela alma racional. Logo, não só as partes específicas, mas também as materiais ressurgirão.
3. Demais. ─ A totalidade do corpo vem donde lhe procede a divisão em partes. Ora, a divisão de um corpo em partes se funda na sua matéria, que forma pela sua disposição a quantidade, objeto da divisão. Logo, também a totalidade corpórea se funda nas partes da matéria. Portanto, nem todas as partes da matéria ressurgindo também não ressurgirá o corpo na sua totalidade. O que é inadmissível. Mas, em contrário. ─ As partes materiais do corpo não permanecem, mas se transformam continuamente, como o prova Aristóteles. Se, portanto, todas as partes materiais ressurgirem, o corpo ressurrecto será excessivamente denso ou de desmesurada quantidade.
2. Demais. ─ Tudo o pertencente verdadeiramente à natureza de um corpo humano pode vir a constituir a matéria do corpo de outro homem que do primeiro se nutriu. Se portanto todas as partes materiais do corpo humano ressurgirem, resulta que ressurgirá em um o que verdadeiramente pertence à natureza humana de outro. O que é inadmissível.
SOLUÇÃO. ─ A parte material do homem não se destina à ressurreição senão enquanto realmente pertencente à natureza humana; porque assim está ligada a alma racional. Ora, o todo material humano pertence por certo verdadeiramente à natureza humana pelo que tem de específico; mas não totalmente, levada em conta a matéria da totalidade; porque toda a matéria que existiu num indivíduo humano, desde o princípio até o fim da sua vida, excederia as proporções especificas do seu corpo, como pretende a terceira opinião, que me parece a mais provável das três. Por onde, o todo humano ressurgirá, considerada a totalidade específica, fundada na quantidade, na figura, na situação e na ordem das partes; mas não ressurgirá todo, se se considera como todo a totalidade da matéria. ─ A segunda opinião, porém, e a primeira não entram nessa distinção; mas distinguem entre as partes, cada uma das quais tem espécie e matéria. Mas essas duas opiniões convêem em ensinarem que o todo gerado do sêmen ressurgirá, mesmo considerada como tal a totalidade material. Mas diferem em dizer a primeira que nada ressurgirá do gerado pela alimentação; o que por certo ressurgirá, pondera a segunda, mas não totalmente, como do sobredito se colhe.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Assim como tudo o existente nas outras partes do corpo ressurgirá, considerada a totalidade especifica, mas não a totalidade material, o mesmo se dará com os cabelos. Ora, às outras partes algo se lhes acrescenta pela nutrição, que produz o crescimento; e isso se conta como outra parte, considerada a totalidade específica, porque ocupa no corpo outro lugar e outra situação, e constitui a substância das outras partes da dimensão. Mas algo se lhe acrescenta que não produz crescimento, aplicando-se apenas em compensar pela nutrição as perdas; e não é computado como outra parte do todo considerado especificamente, pois não ocupa outro lugar nem outra situação no corpo, diferentes do que ocupava a parte que desapareceu. Embora possamos contá-la como outra parte, considerada a totalidade material. Ora, o mesmo se dá com os cabelos. Mas Agostinho se refere aos cabelos cortados durante a vida, que eram partes susceptíveis de crescimento. Que por isso hão de necessariamente ressurgir; não que devam se acrescentar aos outros cabelos, para não ficar desmesurada a quantidade deles, mas às outras partes, como o julgar necessário a divina providência. ─ Ou se refere ao caso de serem deficientes as outras partes; pois então essa deficiência poderá ser suprida pelo excesso de cabelos.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Conforme à terceira opinião, as mesmas são as partes específicas e as materiais. Nem o Filósofo recorre a essa distinção para introduzir diversidade nas partes, mas para mostrar que as mesmas partes podem ser consideradas especificamente, pelo que tem de forma e de espécie; e materialmente, como constituindo o substrato da forma e da espécie. Pois, a matéria da carne não se ordena à alma racional, senão enquanto tem uma determinada forma. E por essa razão se ordena a ressurgir. ─ A primeira e a segunda opinião, porém, professando a diferença entre as partes específicas e as naturais, dizem que a alma racional, embora aperfeiçoe ambas essas partes, não aperfeiçoa contudo as partes materiais senão mediante as partes específicas. Por isso não se ordenam elas igualmente à ressurreição.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ As dimensões indeterminadas se concebem necessariamente, na matéria dos seres sujeitos à geração e à corrupção, antes da recepção da forma substancial. Por isso a divisão fundada nessas dimensões pertence propriamente à matéria. Mas a quantidade completa e determinada a quantidade a recebe depois da sua união com a forma substancial. Por onde, a divisão feita em formas determinadas respeita a espécie; sobretudo quando a idéia de espécie implica, como no corpo humano, situações determinadas das partes.