ressurectos. Em seguida devemos tratar da condição dos bem-aventurados ressurrectos. E primeiro, da impassibilidade dos seus corpos. Segundo, da subtileza. Terceiro, da agilidade. Quarto, da claridade. Sobre a impassibilidade discutem-se quatro artigos:
O primeiro discute-se assim. ─ Parece que os corpos dos santos depois da ressurreição não serão impassíveis.
1. ─ Pois, tudo o que é mortal é passível. Ora, o homem depois da ressurreição será um animal racional mortal, definição esta do homem, que nunca deixará de se aplicar. Logo, o corpo será passível.
2. Demais. ─ Tudo o que é potencial em relação à forma de outro corpo, pode sofrer a ação deste; pois, é a potencialidade em relação à forma que constitui a passibilidade, segundo o Filósofo. Ora, os corpos dos santos depois da ressurreição estarão em potência em relação a outra forma. Logo, serão passíveis. ─ Prova da média. Seres com matéria comum, um deles será potencial em relação à forma de outro; ora, a matéria, por unida a uma forma não perde a potência para unir-se a outra. Ora, os corpos dos santos depois da ressurreição comunicarão com os elementos na matéria, porque serão reconstituídos de matéria idêntica à que agora têem. Logo, serão potenciais em relação a outra forma. E portanto, serão passíveis.
3. Demais. ─ É natural aos contrários serem ativos e passivos uns em relação aos outros, diz o Filósofo. Ora, os corpos dos santos depois da ressurreição serão compostos de elementos contrários, como o são agora. Logo, serão passíveis.
4. Demais. ─ Com o corpo humano ressurgirão o sangue e os outros humores, como se disse. Ora, a luta dos humores uns com os outros gera as doenças e outras paixões do corpo. Logo, os corpos dos santos depois da ressurreição serão passíveis.
5. Demais. ─ Mais repugna à perfeição um defeito atual que um defeito potencial. Ora, a passibilidade implica apenas um defeito potencial. Como porém nos corpos dos bem-aventurados hão de existir em ato alguns defeitos, como as cicatrizes das chagas nos mártires, como as existiram em Cristo, parece que nenhum detrimento sofrerá a perfeição deles se admitirmos que tem corpos passíveis. Mas, em contrário. ─ Todo passível é corruptível, porque a paixão causada por uma ação muito intensa destrói a substância. Ora, os corpos dos santos depois da ressurreição serão incorruptíveis, conforme aquilo do Apóstolo: Semeia-se o corpo em corrupção, ressuscitará em incorrupção. Logo, serão impassíveis.
2. Demais. ─ O mais forte não sofre do mais fraco. Ora, nenhum corpo será mais forte que o dos santos, dos quais diz o Apóstolo: semeia-se em vileza, ressuscitará em glória. Logo, serão impassíveis.
SOLUÇÃO. ─ A paixão pode ser considerada em duplo sentido. ─ Primeiro, em geral. E então toda recepção é considerada paixão; quer o recebido convenha ao recipiente e o aperfeiçoe; quer o contrário, e o corrompa. Pela remoção dessa paixão são impassíveis os corpos gloriosos, pois, não podem ser privados de nenhuma das suas perfeições. ─ Em sentido próprio paixão é como a define Damasceno: Paixão é o movimento contrário à natureza. Assim paixão se chama o movimento imoderado do coração: ao passo que o moderado lhe é a operação. E a razão disso é que, todo paciente é arrastado para os limites do agente, porque o agente faz assemelhar-se a si o paciente. Por isso o paciente como tal, é arrastado para fora dos seus limites. Assim, pois, tomando a paixão no seu sentido próprio, não haverá nos corpos dos santos ressurrectos nenhuma potencialidade para a paixão. Portanto, serão impassíveis. Mas razões diversas foram dadas dessa impassibilidade. Uns a atribuem à condição dos elementos, que no corpo dos ressurrectos não existirão como existem agora. Pois, pensam, os elementos então existirão na sua substância, mas com perda das suas qualidades ativas e passivas. Por onde, se os elementos forem reconstituídos sem elas nos corpos dos ressurrectos, menor perfeição será a deles que a de agora. Além disso, essas qualidades sendo acidentes próprios dos elementos, causadas pela forma e pela matéria delas, muito absurdo será permanecer uma causa sem poder produzir o seu efeito. Por isso outros pretendem que permanecerão as qualidades, mas sem as suas ações próprias, o que o poder divino assim o fará para a conservação do corpo humano. ─ Mas também isto não é admissível. ─ Porque uma mistura exige a ação e a paixão de qualidades ativas e passivas; e segundo predominarem umas ou outras, diversa será a compleição do mista. O que devemos admitir no corpo ressurrecto, que terá carnes e ossos e partes tais, o que tudo não pode constituir uma só compleição. Além disso, segundo esta opinião, a impassibilidade não poderia considerar-se um dote dos ressurrectos. Porque não introduziria nenhuma disposição na substância impassível, mas só a isenção de qualquer paixão exterior causada por virtude divina, que poderia também fazer o mesmo para com os corpos ainda nas condições da vida presente. Donde o ensinarem outros que os próprios corpos gloriosos poderão livrar-se por si de qualquer paixão, pela natureza do quinto corpo, que entra, segundo dizem, na composição do corpo humano, para conciliar os elementos numa certa harmonia, que os torne a matéria susceptiva da alma racional. Contudo, no estado desta vida, por causa de predominância da matéria elementar, o corpo humano é passivo, à semelhança dos outros elementos; mas na ressurreição predominará a natureza do quinto corpo. E então impassível se tornará o corpo humano, à semelhança do corpo celeste. ─ Mas esta opinião é inadmissível. Porque o quinto corpo não entra materialmente na composição do corpo humano, como se provou. Além disso, é impossível que uma virtude natural, como a do corpo celeste, confira ao corpo humano a propriedade da glória, que tal é a impassibilidade do corpo glorioso. Pois, a transformação do corpo humano o Apóstolo a atribui ao poder de Cristo, porque qual é o celeste, tais são também os celestiais. E noutro lugar diz: Reformará o nosso corpo abatido, para o fazer conforme ao seu corpo glorioso, segundo a operação com que também pode sujeitar a si todas as cousas, etc. Demais, a natureza celeste não pode ser a ponto predominante no corpo humano que faça desaparecer a natureza elementar, que implica a passibilidade nos seus princípios essenciais. Por isso, devemos responder que toda paixão resulta da vitória do agente sobre o paciente, do contrário aquele não arrastaria a este para os seus limites. Ora, é impossível um agente dominar o paciente senão lhe enfraquecendo o domínio da sua forma própria sobre a matéria, tratando-se, como agora se trata, da paixão contrária à natureza. Pois, a matéria não se sujeita a um dos contrários sem que desapareça o domínio do outro sobre ela, ou pelo menos fique diminuído. Ora, o corpo humano com tudo o existente nele será, na ressurreição, perfeitamente sujeito à alma, como esta o será perfeitamente a Deus. Por onde, os corpos gloriosos não poderão sofrer mudança nenhuma contra a disposição pela qual são aperfeiçoados pela alma. E portanto serão impassíveis.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Diz Anselmo: Introduziram a idéia de mortalidade na definição do homem os filósofos descrentes de que ele um dia pudesse vir a ser completamente imortal; pois só viam o homem no estado da sua mortalidade atual. ─ Ou podemos responder que, segundo o Filósofo, as diferenças essenciais sendo-nos desconhecidas, recorremos às acidentais para as exprimir, por serem elas as causas destas. Por isso a palavra mortal não entra na definição do homem para significar que a mortalidade lhe pertence à essência; mas sim que a composição de elementos contrários, causa da passibilidade e da mortalidade na vida presente, é da essência humana. Mas, então, não mais lhe será a causa, em virtude da vitória da alma sobre o corpo.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Há duas espécies de potência: a ligada e a livre. E isto é verdade não só da potência ativa, mas também da passiva; pois, a forma liga a potência da matéria imprimindo-lhe uma determinação, que a domina. E como nos seres sujeitos à corrupção a forma não domina perfeitamente a matéria, não pode ligá-la de modo tão completo que não possa às vezes esta receber, imposta por alguma paixão, uma disposição contrária à forma. Nos santos porém, depois da ressurreição, a alma dominará completamente o corpo; nem pode de nenhum modo ser privada desse domínio, porque estará imutavelmente sujeita a Deus, o que não se deu no estado de inocência. Por isso tais corpos terão a mesma potência para outra forma a que estão presentemente unidos, quanto à substância da potência; mas estará ligada, pela vitória da alma sobre o corpo, de modo que não poderá nunca sofrer nenhuma paixão.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ As qualidades elementares são instrumentos da alma, como esta claro em Aristóteles. Porque o calor do fogo no corpo animal é regulado, no ato da nutrição, pela virtude da alma. Mas quando o agente principal é perfeito e nenhum defeito tem o instrumento, nenhum ato deste procede senão por disposição daquele. Por isso, aos corpos dos santos depois da ressurreição, nenhuma ação ou paixão lhes pode resultar das qualidades elementares, em contra-posição à disposição da alma, que visa conservar o corpo.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Segundo Agostinho, a virtude divina pode privar os corpos visíveis e palpáveis deste mundo das qualidades que quiser e lhes deixar as que quiser. Por isso, assim como parcialmente privou o fogo da fornalha dos caldeus do poder de queimar, pois ilesos se conservaram os corpos dos meninos, mas de certo modo permitiu que queimasse porque queimada ficou a lenha, assim também privará os humores da sua passibilidade e deixará subsistir a natureza. E a maneira por que o fará, já dissemos.
RESPOSTA À QUINTA. ─ As cicatrizes das feridas não existirão nos santos, nem existiram em Cristo, enquanto implicam defeito, mas enquanto sinais da virtude constantíssima, com que sofreram pela justiça e pela fé; e por isso lhes aumentarão a alegria, a si e aos outros. Donde o dizer Agostinho: Não sei por que amorosa afeição, nutrida para com os santos mártires, desejamos, no reino celeste, contemplar-lhes as cicatrizes dos ferimentos que os seus corpos padeceram pelo nome de Cristo. E talvez as contemplemos. Pois, não lhes constituirão eles uma deformidade, mas uma dignidade; e há de lhes fulgir uma grande beleza no corpo, embora não do corpo, mas da virtude. Mas nem por terem tido amputados e arrancados os membros, sem eles aparecerão no ressurgir dos mortos, a eles a quem foi dito: não se perderá um cabelo da vossa cabeça.
O segundo discute-se assim. ─ Parece que a impassibilidade será igual em todos.
1. ─ Pois, como diz a Glosa, todos serão igualmente isentos do sofrimento. Ora, não poderão sofrer por terem o dote da impassibilidade. Logo, a impassibilidade será igual em todos.
2. Demais. ─ A negação não é susceptível de mais e de menos. Ora, a impassibilidade é uma negação ou privação da passibilidade. Logo, não poderá ser maior em um que em outro.
3. Demais. ─ Mais branco é o que nenhuma mistura tem de preto. Ora, nenhum dos corpos dos santos terá de mistura qualquer passibilidade. Logo, todos serão igualmente impassíveis. Mas, em contrário. ─ O mérito deve corresponder proporcionalmente ao prêmio. Ora, dos santos uns tiveram maior mérito que outros. Logo, sendo a impassibilidade um prêmio, há de ser maior em uns que em outros.
2. Demais. ─ A impassibilidade entra na mesma divisão que o dom da claridade. Ora, esta não será igual em todos, como diz o Apóstolo. Logo, nem a impassibilidade.
SOLUÇÃO. ─ A impassibilidade pode ser considerada a dupla luz: em si mesma ou na sua causa. Em si, como só implica privação ou negação, não é susceptível de mais nem de menos, mas será igual em todos os bem-aventurados. Considerada porém na sua causa, será maior em um que em outro. Ora, a sua causa é o domínio da alma sobre o corpo, domínio esse causado da imobilidade com que a alma goza de Deus. Por onde quem mais perfeitamente gozar de Deus terá aí uma causa de maior impassibilidade.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Essa glosa se refere à impassibilidade em si mesma considerada, e não na sua causa.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Embora as negações e as privações não sejam em si mesmas susceptíveis de intenção nem de remissão, podem contudo ser mais intensas ou remissas nas suas causas. Assim dizemos mais escuro o lugar que opõe mais e maiores obstáculos à luz.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Certas cousas se intensificam não somente pelo afastamento do que lhe é contrário, mas também por aproximar-se do termo; tal a intensificação da luz. Por isso também a impassibilidade é maior em um que em outro, embora em nenhum coexista com qualquer espécie de passibilidade.
O terceiro discute-se assim. ─ Parece que a impassibilidade priva os corpos gloriosos do exercício atual dos sentidos.
1. ─ Pois, como diz o Filósofo, sentir é de certo modo sofrer. Ora, os corpos gloriosos serão impassíveis. Logo, não terão o exercício atual dos sentidos.
2. Demais. ─ A modificação natural precede à modificação sensível, como o ser natural precede ao ser intencional. Ora, os corpos gloriosos, em virtude da sua impassibilidade, não são susceptíveis de nenhuma modificação natural. Logo, nem da modificação sensível, condição necessária para sentir.
3. Demais. ─ Sempre que a sensação se atualiza, pela recepção de uma nova modificação sensível, dá lugar a um novo juízo. Ora, na vida futura não se formarão novos juízos, porque não haverá então mudanças nos pensamentos. Logo, não hão de exercer os corpos gloriosos atos sensíveis.
4. Demais. ─ Quando uma potência da alma está em intensa atividade, as outras potências sofrem remissão nos seus atos. Ora, na vida futura, a alma será intensamente tomada pelo ato da virtude intelectiva, com que contempla a Deus. Logo, de nenhum modo exercerá os atos da potência sensitiva. Mas, em contrário, a Escritura: Todo olho o verá. Logo, haverá então atividade sensível.
2. Demais. ─ Diz o Filósofo: O animado se distingue do inanimado pelo sentido e pelo movimento. Ora, na vida futura haverá movimento em ato, porque como faíscas por um canavial discorrerão, na frase da Escritura. Logo, haverá exercício atual da sensibilidade.
SOLUÇÃO. ─ Todos admitem que os corpos gloriosos exercem um certo sentido; do contrário a vida corporal dos santos depois da ressurreição seria assimilada mais ao sono que à vigília. O que não se lhes coaduna com a perfeição, porque no sono o corpo sensível não exerce o ato vital na sua plenitude, e por isso Aristóteles chama ao sono meia vida. Mas as opiniões variam quando se trata de explicar o modo de sentir. Uns dizem que, sendo os corpos gloriosos impassíveis e por isso incapazes de receber impressões estranhas, e muito mais que os corpos celestes, não exercerão a atividade sensível recebendo qualquer espécie dos sensíveis, mas antes projetando-o para o exterior. ─ Mas isto não pode ser. Porque na ressurreição perdurará a natureza específica tal qual era no corpo e em todas as suas partes. Ora, os sentidos são por natureza potências passivas, como o prova o Filósofo. Portanto, se na ressurreição os santos sentissem projetando a imagem exteriormente em vez de a receberem em si, não lhes seriam os sentidos potências passivas como presentemente são, mas uma virtude diversa que lhes foi dada; ora, assim como a matéria nunca pode vir a ser forma, assim uma potência passiva não poderá jamais vir a ser ativa. Por isso pretendem outros que os sentidos dos ressurrectos se lhes atualizará por suscepção, não certo de sensíveis externos, mas por efluxo de forças superiores; de modo que, assim como na vida presente as potências inferiores recebem o influxo das superiores, assim ao contrário, serão então as inferiores que o hão de receber das superiores. ─ Mas este modo de receber não faz realmente sentir. Porque todas as potências passivas segundo a sua natureza específica são determinadas a uma atividade especial; pois, uma potência como tal se ordena à cousa donde lhe derivou o nome. Ora, o objeto ativo e próprio dos sentidos externos é a causa existente fora da alma e não a imagem dela existente na imaginação ou na razão. Por onde, se o órgão do sentido não for movido pelas cousas externas, mas pela imaginação ou por qualquer potência superior, não haverá verdadeiro ato de sentir. Por isso não se pode dizer que os frenéticos e outros mentecaptos, nos quais a predominância da imaginação faz decorrerem as espécies para os órgãos sensíveis, sintam verdadeiramente, mas dizemos que imaginam sentir. Por onde, devemos responder, com outros, que os corpos gloriosos exercerão a sua sensibilidade pela suscepção do ato dos objetos exteriores à alma. Devemos porém saber, que os órgãos dos sentidos podem ser modificados pelos objetos externos à alma de dois modos. Primeiro, por modificação natural, quando o órgão dispõe-se pela mesma qualidade natural do objeto exterior à alma, que age sobre ele. Assim, quando a mão se aquece pelo contato com um corpo quente ou sente um cheiro pelo contato com um corpo odorífero. De outro modo, por uma modificação espiritual, quando um órgão recebe a qualidade sensível no seu ser espiritual, i. é, a espécie ou a imagem da qualidade, e não a qualidade em si mesma; assim a pupila recebe a imagem de um corpo branco sem contudo tornar-se branca. Ora, a primeira espécie de percepção não produz a sensação, propriamente falando; porque o sentido é capaz de receber as espécies na matéria, mas separadas da matéria, i. é, sem o ser material que tem fora da alma, como ensina Aristóteles. E essa percepção modifica a natureza do recipiente, porque desse modo a qualidade é recebida no seu ser material; por isso não existirá nos corpos gloriosos. Mas sim a segunda espécie de percepção, que em si mesma, atualiza o sentido sem alterar a natureza do sujeito que a recebe.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Como já resulta do sobredito, a paixão implicada no ato de sentir, que outra cousa não é senão a referida percepção, não altera o estado natural do corpo na sua qualidade, mas o aperfeiçoa espiritualmente. Por isso a impassibilidade dos corpos gloriosos não exclui essa paixão.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Todo sujeito passivo recebe a seu modo a ação do agente. Se, pois, um ser é de natureza a poder receber uma modificação de um agente natural e espiritual, a modificação natural precederá à espiritual, como o ser natural precede ao intencional. Mas se é de natureza a receber somente uma modificação espiritual, não há mister de ser modificado naturalmente. Tal o caso do ar, incapaz de receber a cor no seu ser natural senão só no espiritual, modificando-se pois só deste último modo. Inversamente, os corpos inanimados só naturalmente podem ser modificados pelas qualidades sensíveis, e não espiritualmente. Ora, os corpos gloriosos não podem sofrer nenhuma modificação natural. Só poderão portanto recebê-las espirituais.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Na medida em que um órgão sensível receber uma nova espécie, nessa mesma o sentido comum, mas não o intelecto, formará um novo juízo sobre o objeto. Tal o caso de quem vê o que antes não conhecia. Quanto ao dito de Agostinho ─ não haverá então mudança de pensamentos ─ deve ser entendido dos pensamentos da parte intelectiva. Logo, não colhe a objeção.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Quando de duas cousas uma é a causa da outra, a atenção da alma aplicada a uma não lhe impede nem lhe diminui a atenção aplicada à outra. Assim, um médico, ao mesmo tempo que examina a urina, pode também considerar as regras da arte concernente à cor dela, e mesmo até melhor. Ora, Deus é concebido pelos santos como a razão de tudo o que fazem ou conhecem; por isso os atos da virtude sensitiva, da contemplativa ou da ativa, em nada lhes podem impedir a contemplação divina, nem inversamente. ─ Ou podemos responder, que uma potência fica impedida no seu ato pela atividade intensa de outra, porque uma por si não é capaz de uma operação tão intensa sem que as outras ou os outros órgãos paguem um tributo do influxo do princípio vital que lhes cabia. E como os santos terão todas as suas potências perfeitíssimas, uma poderá exercer intensamente a sua atividade, sem que daí resulte qualquer obstáculo ao ato de outra. Tal se deu com Cristo.
O quarto discute-se assim. Parece que os corpos gloriosos não exercerão os atos de todos os sentidos.
1. ─ Pois, o tato é o primeiro de todos os sentidos, como diz Aristóteles. Ora, os corpos gloriosos não terão absolutamente o sentido do tato, porque esse sentido se opõe em ato pela modificação do corpo animal proveniente de um corpo externo preponderante por uma virtude ativa ou passiva que o tato deve discernir. Mas os corpos gloriosos não são susceptíveis dessa modificação. Logo, nenhum será o sentido do tato.
2. Demais. ─ O sentido do gosto serve à atividade nutritiva. Ora, depois da ressurreição não mais se exercerá essa atividade. Logo, é inútil o sentido do gosto.
3. Demais. ─ Depois da ressurreição nada se corromperá, porque toda criatura será revestida de uma virtude incorruptível. Ora, o sentido do olfato não pode exercer-se senão com a produção de alguma corrupção; pois, o odor não pode ser sentido sem uma espécie de evaporação semelhante ao fumo, que consiste numa resolução de elementos. Logo, o sentido do olfato não se exercerá nos corpos gloriosos.
4. Demais. ─ O ouvido serve para a aprendizagem, como diz Aristóteles. Ora, depois da ressurreição, os bem-aventurados não necessitam de aprender nada por meios sensíveis; porque estarão cheios da sabedoria divina, pela visão mesma de Deus. Logo, não se exercerá então o sentido do ouvido.
5. Demais. ─ A vista se exerce quando a pupila recebe a imagem da cousa vista. Ora, tal não podem os bem─aventurados depois da ressurreição. Logo, não exercerão a atividade da visão, que contudo é o mais nobre de todos os sentidos. Prova da média. O que é atualmente lúcido não pode receber uma imagem visível; por isso um espelho diretamente colocado contra um raio solar não pode reproduzir a imagem de outros objetos. Ora, a pupila dos bem-aventurados, na ressurreição, bem como todo o corpo deles, terá o dom da claridade. Logo, não poderá receber nenhuma imagem de corpo colorido.
6. Demais. ─ Como o verifica a perspectiva, tudo o que vemos o vemos sob um certo ângulo. Ora, isto não é possível aos corpos gloriosos. Logo, não exercerão a atividade do sentido da vista. ─ Prova da média. Sempre que vemos uma causa sob certo ângulo, é mister haver proporção entre o ângulo e a distância do objeto visto. Porque uma causa vista de mais longe é menos vista e sobre um menor ângulo. E poderia o ângulo ser a tal ponto pequeno, que nada visse. Se, portanto, os olhos dos corpos gloriosos vêem sob um ângulo, há de por força, ver numa distância determinada; e de modo que nada veja em distância maior que aquela em que podemos nós ver. O que é de todo absurdo. Donde pois, se conclui, que nos corpos gloriosos não se exercerá o sentido da vista. Mas, em contrário. ─ A potência atualizada é mais perfeita que a pura potência. Ora, a natureza humana será maximamente perfeita nos bem-aventurados. Logo, exercerão a atividade de todos os sentidos.
2. Demais. ─ As potências sensitivas se avizinham mais da alma que o corpo. Ora, o corpo será premiado ou punido pelos méritos ou deméritos da alma. Logo, também todos os sentidos serão premiados nos bem aventurados e punidos nos maus, conforme o prazer e a dor ou tristeza implicados na atividade deles sentidos.
SOLUÇÃO. ─ Duas opiniões há sobre este assunto. Uns dizem que os corpos gloriosos terão todas as potências dos sentidos, mas só exercerão a atividade de dois: o tato e a vista. Nem será isso por deficiência dos sentidos, mas, do meio e do objeto. Mas não serão esses outros sentidos inúteis, porque servirão de integrar a natureza humana e a proclamar a sabedoria do Criador. ─ Mas esta opinião não é verdadeira. Porque o que serve de meio aos dois sentidos, de tato e da vista, serve também aos outros. Assim, o meio da vista é o ar, meio também do ouvido e do olfato, como o mostra Aristóteles. Também o gosto, sendo uma espécie de tato, tem o mesmo meio deste, como explica ainda o Filósofo. O olfato também o terão os bem-aventurados, pois a Igreja canta que os corpos dos santos exalarão um odor suavíssimo. Louvores vocais também os haverá na pátria. Donde o dizer Agostinho, àquilo da Escritura ─ Altos louvores de Deus se acham na sua boca: Os corações e as línguas não acabarão nunca de louvar a Deus. E o mesmo também diz a Glosa àquele outro lugar: Em cânticos e a toque de tímbales. Por isso, segundo outros, devemos admitir que os santos exercerão também os sentidos do olfato e do ouvido. Mas não o gosto de modo que sinta a comida ou a bebida tomadas, como do sobredito resulta. Salvo se se disser que exercerão a atividade do gosto pela ação de alguma umidade exterior sobre a língua.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ As qualidades percebidas pelo tato são as de que se constitui o corpo animal. O corpo animal tem, pois, na vida presente, uma natureza tal, que pode receber do objeto do tato, pelas qualidades tangíveis, tanto a modificação natural como a espiritual. Por isso o sentido do tato é considerado o mais material de todos os sentidos, porque produz no corpo uma modificação mais material. Entretanto, como o ato da sensação se perfaz na modificação espiritual, não implica senão acidentalmente a modificação material. Por onde, os corpos gloriosos, que excluem pela sua impassibilidade a modificação material, serão modificados apenas espiritualmente pelas qualidades tangíveis. O que também se deu com o corpo de Adão, que nem o fogo podia queimar nem uma espada cortar; e contudo sentia a ação desses agentes.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Os santos não terão o sentido do gosto enquanto dá a sensação dos alimentos. Mas enquanto serve para julgar dos sabores, poderão talvez exercê-lo, do modo referido.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Certos ensinaram que o odor outra cousa não é senão uma evaporação à guisa de fumo. Mas esta doutrina não pode ser verdadeira. Como o demonstra o fato de os abutres acorrerem de lugares remotíssimos ao sentirem o cheiro dos cadáveres; e contudo, não seria possível a qualquer evaporação chegar de um cadáver a tão remotos lugares, mesmo se todo ele se resolvesse em vapor; sobretudo que os sensíveis, a igual distância, causam alterações igualmente em todas as direções. O odor pode, pois, algumas vezes alterar o meio e produzir no órgão a modificação espiritual sem o contato de nenhuma evaporação; e se a evaporação é necessária é que o odor fica retido nos corpos pela umidade, e por isso não pode ser percebido sem uma espécie de dissolução que o ponha em liberdade. Mas os corpos gloriosos terão o olfato na sua última perfeição, e de nenhum modo comprimido. E por si mesmo causará a modificação espiritual, como o faz o odor pela evaporação fumal. E assim os santos com o seu sentido do olfato, não impedido por nenhuma umidade, conhecerão não só as excelências dos odores, como se dá conosco, por causa da excessiva umidade do nosso cérebro, mas também as diferenças mínimas entre eles.
RESPOSTA À QUARTA. ─ Cânticos de louvor se farão ouvir na pátria, embora alguns digam o contrário, e os seus acentos causarão no órgão do ouvido dos bem-aventurados somente uma modificação espiritual. Nem será por aprendizagem que adquirirão a ciência, mas pela perfeição do sentido e pelo prazer. Mas no céu poderá haver voz, já o dissemos.
RESPOSTA À QUINTA. ─ A intensidade de uma luz não impede a recepção espiritual da espécie da cor, contanto que ela conserve a sua natureza diáfana. E isso o demonstra o fato de, por mais iluminado que esteja o ar, poder ainda ser o meio através do qual exercemos a visão; e quanto mais iluminado tanto mais claramente enxergamos, salvo se a nossa vista estiver enfraquecida por algum defeito. Quanto ao espelho que, colocado diretamente contra o raio solar, não reflete a figura de nenhum outro corpo, não é por ficar impedido de receber a imagem deste, mas por ficar privado da reverberação. Pois, é necessária, para uma forma aparecer num espelho, uma certa reverberação produzida por um corpo obscuro; por isso ao vidro do espelho se lhe coloca posteriormente uma folha de chumbo. Mas o raio solar dissipa a obscuridade desta, e por isso não pode o espelho refletir nenhuma imagem. A claridade do corpo glorioso porém não priva a pupila da sua diafaneidade, porque a glória não destrói a natureza. Por isso uma claridade intensa sobre a pupila, longe de enfraquecer a visão, a torna mais aguda.
RESPOSTA À SEXTA. ─ Tanto mais perfeito é um sentido, tanto melhor pode perceber o seu objeto, com uma fraca impressão. E menor é o ângulo sob a qual a vista é modificada pelo objeto visível, tanto menor é a modificação que causa. Donde vem que uma vista forte pode enxergar mais longe que uma fraca; porque o ângulo visual é tanto menor quanto maior é a distância. E como os corpos gloriosos gozam de uma vista perfeitíssima, poderão ver, mesmo se o órgão visual lhes é ferido por uma modificação mínima. Por isso poderão enxergar então sob um ângulo muito menor do que o podem presentemente; e por consequência, de muito mais longe.