Quando poderei eu descrever, com o poder de minha pena, todas as exortações, todos os terrores, as consolações, as inspirações de que lançaste mão para me levar a pregar tua palavra e dispensar ao povo teu sacramento?
Mesmo que eu fosse capaz de enumerar na ordem tais coisas, as gotas de meu tempo me são preciosas. De há muito que anseio ardentemente meditar sobre tua lei, e te confessar nela minha ciência e minha ignorância, os albores de tuas luzes na minha alma e o que ainda resta em mim de trevas, até que minha fraqueza seja absorvida por tua força. Não quero gastar em outros cuidados as horas de liberdade que me restam além dos cuidados indispensáveis do corpo, do trabalho intelectual, dos serviços que devemos aos homens, e dos que prestamos sem lhe dever.
Senhor meu Deus, ouve minha prece; que tua misericórdia atenda ao meu desejo, pois não arde só por mim, mas também para servir ao amor fraternal, e bem vês em meu coração que é assim.
Permitas que te sacrifique meu pensamento e minha língua, mas concede-me o que te devo oferecer, porque sou pobre e indigente, enquanto és rico para todos os que te invocam e, sem cuidados contigo, cuidas de nossa existência. Livra-me, Senhor, de toda temeridade e de toda mentira que meus lábios e meu coração possam proferir. Que tuas Escrituras sejam minhas castas delicias, que não me engane nelas, nem com elas engane a ninguém. Senhor, ouve-me, e tem compaixão, Senhor meu Deus, luz dos cegos e vigor dos fracos, mas também luz dos que vêem e força dos fortes; presta atenção à minha alma e ouve-a clamar do fundo do abismo. E se teus ouvidos estão ausentes do abismo, para onde iremos, por quem clamaremos?
Teu é o dia e tua é a noite; a um aceno do teu querer, os minutos voam. Concede-me o tempo para meditar nos mistérios de tua lei, e não a feche para os que lhe batem à porta; não foi em vão que quiseste fossem escritas tantas páginas de obscuros segredos. Porventura, estes bosques não terão seus cervos, que ali se abrigam, se alimentam, que aí passeiam, descansam e ruminam? Ó Senhor, aperfeiçoa-me e revela-me o sentido desses mistérios. Tua palavra é minha alegria, tua voz está acima de todos os prazeres. Concede-me o que amo, porque ando enamorado, e amar é um dom que me concedeste. Não abandone teus dons, nem deixe de regar tua erva sedenta. Te exaltarei por tudo o que descobrir em teus livros; que eu ouça a voz de teus louvores. Faz que eu me inebrie de ti, e que eu contemple as maravilhas de tua lei, desde o começo dos tempos, quando fizeste o céu, a terra, até que partilharemos do reino do perpétuo de tua cidade santa.
Senhor, tem piedade de mim, ouve meu desejo. Julgo que não desejo nada da terra, nem ouro, nem prata, nem pedras preciosas, nem belas roupas. Nem honrarias, nem prazeres carnais, nem de coisas necessárias ao corpo de nossa peregrinação desta vida. Tudo, alias, nos é dado por acréscimo quando procuramos teu reino e tua justiça.
Vê, meu Deus, de onde nasce meu desejo. Os ímpios contaram-me suas alegrias, mas esses prazeres não são como os proporcionados por tua lei. É ela que inspira meu desejo. Olha, ó Pai, olha, e vê, e aprova. Queira tua misericórdia que eu encontre graça diante de ti, e que os arcanos secretos de tuas palavras se abram a meu espírito que bate às suas portas!
Isso eu te suplico por nosso Senhor, Jesus Cristo, teu filho, aquele que está sentado à tua direita, o Filho do homem, a quem estabeleceste como mediador entre nós e ti. Por ele nos procuraste quanto não te procurávamos, e nos procuraste para que te buscássemos! Em nome de teu Verbo, por quem criaste todas as coisas, e a mim entre outras; de teu Filho unigênito, por quem chamaste à adoção o povo dos crentes, no qual também estou.
Eu te conjuro por aquele que está sentado à tua direita, e que intercede por nós, no qual estão ocultos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento que procuro em teus livros. Moisés escreveu a respeito: "Isto diz ele, isto diz a Verdade".