Que ninguém me moleste portanto, dizendo: "O pensamento de Moisés não é o que tu dizes, mas o que eu digo". – Se apenas me dissessem: "Como sabes que Moisés de fato entendia essas palavras no sentido que lhe atribuis?" – Eu não me agastaria, e responderia talvez o que respondi acima, ou até mais explicitamente, se meu contraditor fosse insistente.
Quando porém, me dizem: "O pensamento de Moisés não é o que dizes, é o que eu afirmo" – sem contudo provar a veracidade de uma ou outra interpretação, então, ó vida dos pobres, ó meu Deus, em cujo seio não há contradição, inunda de paz o meu coração, para que eu tenha paciência para suportar essas pessoas. Pois não emitem tais opiniões inspirados por Deus, ou porque tenham lido o pensamento de teu servo, mas porque são orgulhosos. Ignoram o pensamento de Moisés, mas só apreciam o deles, e não por que seja verdadeiro, mas por ser o deles. Assim não fosse, apreciariam igualmente a opinião alheia, quando verdadeira, assim como eu aprecio o que eles dizem de verdadeiro, não porque vem deles, mas porque é verdade, e que, por isso mesmo, é tanto deles como minha, pois pertence em comum a todos os amantes da verdade.
Quanto à pretensão de que o pensamento de Moisés não está no que digo, mas no que eles dizem, isso eu não aceito. Ainda que assim fosse, sua temeridade não é da ciência, mas a da audácia; seria produzida não por uma intuição correta, mas pelo orgulho.
Senhor, teu julgamento é terrível. Porque tua verdade nem é um bem meu, nem o bem deste ou daquele: a verdade é o bem de todos nós; e tu nos conclamas abertamente a que participemos dela, com a advertência severa de não a possuirmos como bem privativo, para não sermos privados dela. De fato, quem reivindica apenas para si o que ofereces para gozo de todos, e quer para si o que é de todos, é rejeitado desse bem comum para o que é seu, isto é, da verdade para a mentira: o que fala mentira fala do que é seu.
Ouvem, pois, juiz excelente, ó Deus, que és a própria Verdade: ouve o que respondo a esse contraditor.
É diante de ti que falo, e na presença de meus irmãos que usam legitimamente da lei, cujo fim á caridade. Escuta e vê o que lhes digo, se é de teu agrado. Eis as palavras fraternas e de paz que lhe dirijo: "Quando ambos vemos que tuas palavras são verdadeiras, ou as minhas palavras são verdadeiras, pergunto: onde o vemos? Certamente não é em ti que eu a vejo, nem tampouco é em mim que tu a vês. Ambos a vemos na verdade imutável, que está acima de nossas inteligências".
Uma vez que não discordamos sobre essa luz do Senhor, nosso Deus, por que discutir sobre o pensamento de nosso próximo? Nós não o podemos ver como vemos a verdade imutável. Se o próprio Moisés nos aparecesse e nos explicasse seu pensamento – nem assim veríamos esse pensamento, mas apenas acreditaríamos nele. Cuidemos pois, de não nos levantarmos orgulhosamente um contra o outro a respeito das Escrituras. Amemos ao Senhor, nosso Deus, de todo o nosso coração, de toda nossa alma, de todo nosso espírito, e ao próximo como a nós mesmos. É segundo esses dois preceitos da caridade que Moisés pensou aquilo que escreveu em seus livros. Não acreditarmos nisso seria considerar o Senhor mentiroso, atribuindo a seu servo sentimentos distintos daqueles que ele próprio lhe ensinou. Diante de tantos pensamentos igualmente verdadeiros que podem ser deduzidos dessas palavras, vê que estultice é afirmar temerariamente que Moisés teve este pensamento e não aquele, ofendendo com nossas disputas perniciosas a caridade, por amor da qual ele escreveu as palavras que procuramos interpretar!