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Confissões

Santo Agostinho

Capítulo

Capitulum
Livro Nono Cap.2

CAPÍTULO II

Adeus ao magistério

Pareceu-me de bom alvitre, em tua presença, não abandonar de modo ostensivo o ministério da minha língua, mas retirá-lo suavemente do mercado da loquacidade, para que dali por diante os jovens, que não se preocupam com tua lei ou paz, mas com as enganosas loucuras e contendas forenses, não comprassem de minha boca armas para seu furor. Felizmente faltavam pouquíssimos dias para as férias das vindimas (é provável que as férias de outono dos estudantes coincidissem com as férias dos tribunais, que se iniciavam em 22 de agosto, e terminavam em 15 de outubro). Decidi suportá-los até lá. Então me retiraria como de costume, e, resgatado por ti, não tornaria mais a vender meu ofícios.

Esta minha determinação, te era conhecida; dos homens, só a conheciam os de minha intimidade. E, mesmo assim, tínhamos combinado de nada deixar transpirar. Contudo, quando subíamos do vale de lágrimas, cantando o cântico gradual (série de salmos cantados pelos peregrinos que sobem os degraus do templo de Jerusalém) nos tinhas dado setas agudas e carvões destruidores contra a língua pérfida que contradiz, sob o pretexto de aconselhar e, como quem se alimenta, consome o que ama.

Tinhas alvejado nosso coração com as setas do teu amor, e levávamos tuas palavras cravadas em nossas entranhas; os exemplos de teus servos, que das trevas trouxeram para a luz, e da morte para a vida, ardiam no fundo de nosso espírito em uma espécie de fogueira, que inflamava e consumia nosso torpor, para que não mais nos inclinássemos para as baixezas. Estávamos inflamados de tal ardor, que o vento da contradição das línguas dolosas não nos apagaria, antes fazia-nos arder mais e mais.

Contudo, por causa de teu nome, que santificaste em toda terra, nossa decisão e propósito teriam também quem os louvasse. Pareceria de certo modo jactância não aguardar as férias tão próximas; abandonar antes dessa data uma profissão pública, e exposta a todos, seria atrair sobre minha conduta todas as atenções, provocando comentários. Diriam que eu me adiantara às férias iminentes por querer parecer grande personagem. E de que me valeria que pensassem ou discutissem sobre minhas intenções, blasfemando sobre o meu bem?

Além disso, nesse mesmo verão, devido ao excessivo trabalho didático, meus pulmões começaram a se ressentir; respirava com dificuldade, e as dores no peito e minha voz, que não saía clara ou prolongada, revelavam uma lesão. A princípio me senti angustiado, vendo-me quase obrigado a abandonar o fardo do magistério ou, para me curar e convalescer, teria certamente de o interromper. Mas, quando nasceu em mim e se firmou a vontade plena de repousar e de ver que és o Senhor, então, tu o sabes meu Deus, que cheguei a me alegrar de encontrar esta desculpa verdadeira para moderar o sentimento das famílias, que por causa de seus filhos nunca me permitiram ser livre.

Cheio dessa consolação, esperava que escoasse aquele tempo – talvez uns vinte dias. Mas minguara minha coragem, porque já me abandonara a cobiça de ganho, que me ajudava a carregar este pesado encargo; e teria sucumbido se a paciência não tomasse o lugar da ambição.

Talvez alguns de teus servos, meus irmãos, dirá que pequei nisso porque, estando com o coração já cheio de desejos de te servir, consenti ficar mais uma hora sentado na cátedra da mentira. Não discutirei. Mas tu, Senhor misericordiosíssimo, acaso não me perdoaste e resgataste também este pecado, junto com todos os demais horrendos e mortais na água santa do batismo?