Em seguida, devemos tratar da obra da distinção em si mesma. E, primeiramente, da obra do primeiro dia. Segundo, da do segundo. Terceiro, da do terceiro. Sobre o primeiro ponto quatro artigos se discutem.
O primeiro discute-se assim. — Parece que a luz se atribui, propriamente, aos seres espirituais.
1. — Pois, Agostinho diz que a luz é melhor e mais certa, nos seres espirituais; e que de Cristo não se diz que é luz, do mesmo modo que é pedra; senão, luz, própria, e, pedra, figuradamente.
2. Demais. — Dionísio coloca a luz entre os nomes explicativos de Deus. Ora, estes nomes se predicam, propriamente, dos seres espirituais. Logo, a luz se predica destes seres, propriamente.
3. Demais. — O Apóstolo diz: Porque tudo o que se manifesta é luz. Ora, a manifestação mais propriamente se atribui aos seres espirituais que aos corporais. Logo, também a luz. Mas, em contrário, Ambrósio coloca o esplendor entre as coisas que se dizem de Deus metaforicamente.
SOLUÇÃO. — Pode-se considerar qualquer nome de duplo ponto de vista: segundo a sua imposição primeira e segundo o seu uso. Assim é claro que o nome de visão, primeiramente imposto para significar o ato do sentido da vista, foi, por causa da dignidade e da certeza desse sentido, estendido, pelo uso, não só a todo o conhecimento dos outros sentidos — sendo por isso que dizemos: vede como sabe, ou como cheira, ou como é cálido; mas, ainda ulteriormente, ao conhecimento do intelecto, segundo a expressão da Escritura: Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus. E semelhantemente, deve-se dizer o mesmo do vocábulo luz, imposto, primeiramente, para significar a causa da manifestação, no sentido da vista; e estendido, em seguida, para significar tudo o que causa a manifestação, em qualquer conhecimento. Se, pois, se considerar tal nome na sua imposição primeira, a luz se atribui metaforicamente aos seres espirituais, como ensina Ambrósio. Se, porém, for considerado conforme o uso corrente e estendendo-se a todas as manifestações, então predica-se propriamente dos seres espirituais. Donde se deduzem claras as RESPOSTAS ÀS OBJEÇÕES.
O segundo discute-se assim. — Parece que a luz é corpo.
1. — Pois, Agostinho diz que a luz tem o primeiro lugar entre os corpos. Logo, é corpo.
2. Demais. — O Filósofo diz que a luz é uma espécie de fogo. Ora, este é corpo. Logo, a luz é corpo.
3. Demais. — Ser transportado, entrecortado e refletido são propriedade dos corpos. Ora, todas essas propriedades, que só aos corpos convém, se atribuem à luz ou aos seus raios, pois, os diversos raios se conjugam ou separam, como diz Dionísio, o que também só aos corpos pode convir. Logo, a luz é corpo. Mas, em contrário, dois corpos não podem estar simultaneamente no mesmo lugar. Ora, a luz está no mesmo lugar, simultaneamente com o ar. Logo, não é corpo.
SOLUÇÃO. — Que é impossível a luz seja corpo, de tríplice modo se prova. O primeiro argumento é tirado do lugar. Pois o lugar de um corpo não é o de outro; nem é naturalmente possível estejam dois corpos quaisquer simultaneamente no mesmo lugar, porque o contíguo exige situação distinta. Em segundo lugar, o mesmo resulta da natureza do movimento. Se, pois, a luz fosse corpo, a iluminação seria o movimento local do corpo. Ora, nenhum movimento dessa espécie pode ser instantâneo, porque tudo o que se move localmente deve chegar ao meio do espaço a percorrer, antes de chegar ao fim. Ora, a iluminação é instantânea e nem se pode dizer que se realize num tempo imperceptível. Porquanto, se num espaço pequeno, o tempo nos escapasse, o mesmo não se daria num grande espaço, p. ex., o que meia entre o oriente e o ocidente. Ora, assim que o sol nasce num ponto do oriente, ilumina-se todo o hemisfério, até o ponto oposto. — Mas ainda há outra consideração a fazer, quanto ao movimento, a saber. Todo corpo tem um movimento natural determinado; ora, o movimento da iluminação se opera em todas as direções, sem que seja antes circular que reto. Por onde, é manifesto que a iluminação não é o movimento local de nenhum corpo. Em terceiro lugar, o mesmo resulta da geração e da corrupção. Pois, se a luz fosse corpo, resultaria que este se corromperia e a sua matéria receberia outra forma, quando o ar se entenebrece, por ausência da luz. O que não se dá, a menos que não se considerem também as trevas como corpo. E nem ainda se compreenderia de que matéria fosse gerado esse corpo imenso que quotidianamente enche meio hemisfério. E seria também ridículo dizer-se que ele se corrompe unicamente pela ausência de luz. E se dissermos que não se corrompe, mas nasce e move-se em círculo, simultaneamente com o sol, o que se há de opor ao fato de obscurecer-se toda a casa pela só interposição de um corpo contra a candeia? E nem se diga que a luz se congrega em torno da candeia, porque não era antes aí maior do que agora a claridade. Ora, como todos esses fatos repugnam não só à razão, mas também aos sentidos, conclui-se que é impossível a luz ser corpo.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Agostinho entende por luz o corpo atualmente lúcido, isto é, o fogo, o nobilíssimo dos quatro elementos.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Aristóteles denomina luz ao fogo, na sua matéria própria; assim como o fogo, na matéria aérea, se denomina chama, e, na térrea, carvão. Todavia, não se ligue muita importância aos exemplos dados por Aristóteles nos tratados de lógica, porque os apresenta como prováveis, segundo a opinião dos outros.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Tais propriedades se atribuem todas à luz, metaforicamente, como também se podem atribuir ao calor. Pois, sendo o movimento local naturalmente o primeiro dos movimentos, como prova o Filósofo, aplicamos os nomes próprios a esse movimento local, à alteração e a todos os movimentos; assim como também o nome de distância, derivado do lugar, se aplica a todos os contrários, como diz Aristóteles.
O terceiro discute-se assim. — Parece que a luz não é uma qualidade.
1. — Pois, toda qualidade permanece no sujeito, mesmo depois de ter o agente desaparecido; p. ex., o calor conserva-se na água ainda depois de afastado o fogo. Ora, retirado o foco luminoso, a luz não permanece no ar. Logo, não é uma qualidade.
2. Demais. — Toda qualidade sensível tem o seu contrário; assim o quente e o frio, o branco e o preto. Mas à luz nada é contrário, pois as trevas são a privação dela. Logo, a luz não é uma qualidade sensível.
3. Demais. — A causa é mais poderosa que o efeito. Ora, a luz dos corpos celestes causa as formas substanciais nos seres inferiores terrestres, pois é a que dá o ser espiritual às cores, tornando-as atualmente visíveis. Logo, a luz não é uma qualidade sensível, mas antes, uma forma substancial ou espiritual. Mas, em contrário, Damasceno diz que a luz é uma qualidade.
SOLUÇÃO. — alguns disseram que a luz, no ar, não tem o ser natural, como, p. ex., a cor não o tem na parede; mas o ser intencional, como p. ex., a semelhança da cor, no ar. — Mas isto não pode ser, por duas razões. Primeiro, porque a luz qualifica o ar, tornando-o atualmente luminoso. Porém a cor não o qualifica, pois não se diz que o ar é colorido. Segundo, porque a luz produz um efeito natural, pois, com os raios do sol aquecem-se os corpos; ao passo que as intenções não produzem transmutações naturais. Outros, porém, disseram que a luz é a forma substancial do sol. — Mas também essa opinião é inadmissível, por duas razões. Primeiro, porque nenhuma forma substancial é, por si mesma, sensível; pois, a quididade é o objeto do intelecto, como diz Aristóteles, e a luz é, em si, visível. Segundo, porque é impossível seja a forma substancial, em um ser, acidental em outro; pois, sendo próprio da forma substancial, por si mesma, constituir a espécie, sempre e em todos os seres ela vai junto com esta. Ora, a luz não é a forma substancial do ar, pois do contrário este se corromperia com a ausência daquela. Logo, não pode ser a forma substancial do sol. Deve-se, portanto, dizer que, assim como o calor é uma qualidade ativa, resultante da forma substancial do fogo; assim a luz é uma qualidade ativa resultante da forma substancial do sol ou de qualquer outro corpo por si lúcido, se porventura existe. E a prova é que os raios das diversas estrelas têm diversos efeitos segundo as naturezas diversas dos corpos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Resultando a qualidade da forma substancial, conforme o sujeito se comporta no receber a qualidade, assim mesmo se comportará no receber a forma. Quando, pois, a matéria já recebeu a forma, perfeitamente, também firmemente fica estabelecida a qualidade resultante da forma; assim, p. ex., se a água se convertesse em fogo. Porém, se a forma substancial foi recebida imperfeita e como incoativa, a qualidade resultante permanece, por certo, por algum tempo, mas não sempre; como bem se vê na água aquecida, que torna à sua natureza. Ora, a iluminação não se opera por nenhuma transmutação da matéria, para receber a forma substancial, como se se operasse alguma incoação desta; por onde, a luz não permanece senão enquanto permanece o agente.
RESPOSTA À SEGUNDA. — É acidentalmente que a luz não tem contrário, como qualidade natural que é do primeiro corpo alterante, que escapa à contrariedade.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Assim como o calor produz a forma do fogo, quase instrumentalmente, em virtude da forma substancial; assim a luz age, quase instrumentalmente, em virtude dos corpos celestes, para produzir as formas substanciais e para tornar as cores atualmente visíveis, enquanto qualidade que é do primeiro corpo sensível.
O quarto discute-se assim. — Parece que não se coloca convenientemente a produção da luz no primeiro dia.
1. — Pois, sendo a luz uma qualidade, como já se disse, e sendo a qualidade um acidente, esta não é, por natureza, um ser primeiro, mas segundo. Logo, não se deve colocar no primeiro dia a produção da luz.
2. Demais. — Pela luz se distingue a noite, do dia; e esta é a função do sol, que se considera como feito no quarto dia. Logo, não se deve colocar a produção da luz no primeiro dia.
3. Demais. — A noite e o dia resultam do movimento circular do corpo lúcido. Ora, o movimento circular é próprio do firmamento, do qual se lê que foi feito no segundo dia. Logo, não se deve colocar no primeiro dia a produção da luz, que distingue as noites e os dias.
4. Demais. — Se se disser que se trata da luz espiritual, responde-se, em contrário, que a luz da qual se lê ter sido criada no primeiro dia, distingue-se das trevas. Ora, não havia, no princípio, trevas espirituais, pois, mesmo os demônios eram, então, bons, como antes se disse. Logo, não se deve colocar no primeiro dia a produção da luz. Mas, em contrário. Era necessário fosse criado no primeiro dia aquilo sem o que não pode existir o dia. Ora, este não pode existir sem a luz. Loo, era necessário se fizesse a luz no primeiro dia.
SOLUÇÃO. — Há duas opiniões sobre a produção da luz. — Agostinho opina que não pareceu conveniente a Moisés ter calado a produção da criatura espiritual. Assim, quando diz: No princípio criou Deus o céu e a terra, por céu — explica Agostinho — se entende a criatura espiritual ainda informe; por terra, porém, a matéria informe da criatura corporal. E por ser mais digna que a corporal, a natureza espiritual foi formada antes. Por isso, a formação da natureza espiritual foi significada pela produção da luz, entendendo-se esta como espiritual. Pois, a formação da natureza espiritual está em ser iluminada, para aderir ao Verbo de Deus. Outros porém são de opinião que Moisés omitiu a produção da criatura espiritual; mas aduzem razões diferentes. — Assim, Basílio diz que Moisés começou a sua narração, desde o princípio temporal das coisas sensíveis; mas a natureza espiritual i. é, angélica, a omitiu, porque foi criada antes. — Crisóstomo, porém, dá outra razão. Moisés falava a um povo rude, capaz de apreender só o corporal, e queria fazê- lo abandonar a idolatria. Ora, dar-lhes-ia ocasião à ela, se lhes falasse em quaisquer substâncias superiores a todas as criaturas corpóreas; pois as tomariam como deuses, inclinados que já eram a adorar, desse modo, o sol, a luz e as estrelas, o que lhes proíbe a Escritura. Porém, Moisés já tinha-se referido a criatura corporal como constituída em multíplice informidade. Uma a exprimiu dizendo: A terra, porém, estava informe e vazia; outra: E as trevas cobriam a face do abismo. — Ora, era necessário que, primeiramente, fosse removida a informidade das trevas, pela produção da luz, por duas razões. — Primeira, porque sendo a luz, como já se disse, uma qualidade do primeiro corpo, por ela devia começar o mundo a ser formado. Segunda, porque, pela sua comunidade, a luz faz com que possam os corpos inferiores comunicar com os superiores Pois, assim como no conhecimento partimos dos seres mais comuns, assim também na operação; por isso o ser vivo é gerado antes do animal, que o é antes do homem, como diz Aristóteles. Por onde, a ordem da divina sabedoria devia manifestar-se de modo a, entre as obras da distinção, ser produzida a luz como forma do primeiro corpo, e como a mais comum. — Basílio acrescentou, contudo, terceira razão, convém saber que, por meio da luz, se manifestam todos os demais seres. — Mas ainda pode-se acrescentar uma quarta, que já se referiu numa das objeções, convém saber: não podendo haver dia sem luz, era necessário fosse essa feita no primeiro dia.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Segundo a opinião que ensina ter a informidade da matéria precedido, na duração, à formação, necessário é dizer-se que a matéria foi, no princípio, criada em união com as formas substanciais; sendo depois formada segundo algumas condições acidentais, entre as quais tem a luz o primeiro lugar.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Alguns dizem que essa luz era uma nuvem lúcida, que, após a criação do sol, voltou à matéria preexistente. Mas isto não é admissível, porque a Escritura, no princípio do Gênesis, comemora a instituição da natureza, que a seguir perseverou. Por onde, não se pode dizer que foi então produzida alguma coisa, que depois deixou de ser. — Por isso, outros dizem que essa nuvem lúcida ainda subsiste unida com o sol, de modo a não poder ser separada dele. Mas nesta suposição tal nuvem seria supérflua; ora, nada é vão nas obras de Deus. — Por onde, outros dizem que dessa nuvem se formou o corpo do sol. Mas ainda isto não se pode admitir, se se admite que o corpo do sol não é da natureza dos quatro elementos, mas é incorruptível por natureza; pois então, a sua matéria não pode se unir a outra forma. A verdade, portanto, é, como pensa Dionísio, que tal luz era a do sol, embora ainda informe, por já ser ela da substância do mesmo e ter a virtude iluminativa, em comum; mas em seguida foi-lhe dada, a essa luz, uma especial e determinada virtude para um efeito particular. Assim que, conforme esta opinião, houve na criação de tal luz uma tríplice distinção entre a luz e as trevas. Primeiro, quanto à causa, estando a da luz na substância do sol, e a das trevas, na opacidade da terra. Segundo, quanto ao lugar, estando a luz em um hemisfério e as trevas, no outro. Terceiro, quanto ao tempo, estando, no mesmo hemisfério, a luz, numa parte do tempo, e as trevas, em outra. E é isto que significa o dito: Chamou à luz dia, e às trevas noite.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Basílio diz que a luz e as trevas existiram, então, pela emissão e contração da luz, e não pelo movimento. — Mas Agostinho objeta, em contrário, que nenhuma razão havia para essa vicissitude de emitir-se e retrair-se a luz, por não existirem homens e animais, a cujos usos isso serviria. E demais, não pode a natureza do corpo lúcido retrair a luz, enquanto presente, senão miraculosamente. Ora, na instituição primeira da natureza, não se busca o milagre, senão o que está em a natureza das coisas, como diz Agostinho. Por onde, deve-se dizer que é duplo o movimento, no céu: um, comum a todo céu, causa do dia e da noite, e esse foi instituído no primeiro dia; outro, porém, diversificado pelos diferentes corpos, e causa das diversidades dos dias, entre si, dos meses e dos anos. E por isso, no primeiro dia, menciona-se só a distinção da noite e do dia, causada pelo movimento comum; porém, no quarto, menciona-se a diversidade dos dias, dos tempos e dos anos, quando se diz: Para os tempos, os dias e os anos; e essa diversidade se opera pelos movimentos próprios.
RESPOSTA À QUARTA. — Segundo Agostinho, a informidade não precedeu à formação, quanto à duração. Por onde, é necessário dizer-se que, pela produção da luz se entende a da criatura espiritual; não a criatura espiritual perfeita pela glória, pois, com esta não foi criada a luz, mas a perfeita pela graça, com a qual, como já se disse, foi a luz criada. — Assim, por tal luz se operou a separação das trevas, isto é, da informidade da outra criatura não formada. — Ou, se todas as criaturas foram criadas simultaneamente, distinguia-se a luz das trevas espirituais, ainda não existentes, porque o diabo não foi criado mau; mas Deus as previa como futuras.