Suma Teológica

Summa Theologiae Quaestiones

Questões

Quaestiones
prima pars secundae Q.22 →

Do sujeito das paixões da alma.

Em seguida devemos tratar das paixões da alma. Primeiro, em geral. Segundo, em especial. Em geral, quatro questões devemos estudar, relativamente a elas. Primeiro, do sujeito delas. Segundo, da diferença entre elas. Terceiro, da comparação mútua entre as mesmas. Quarto, da sua malícia e bondade. Sobre a primeira questão três artigos se discutem:

Art. 1 — Se a alma tem paixões.

(III Sent., dist. XV. Q. 2, a . 1, qª 2; De Verit., q. 26, a . 1, 2). O primeiro discute-se assim. ― Parece que a alma não tem paixões.

1. ― Pois, sofrer é próprio da matéria. Ora, a alma não é composta de matéria e forma, como estabelecemos na primeira parte. Logo, a alma não tem paixões.

2. Demais. ― A paixão é um movimento, como diz Aristóteles. Ora, a alma não é movida, como ainda Aristóteles o prova. Logo, nela não há paixões.

3. Demais. ― A paixão é causa de corrupção, pois, como diz Aristóteles, toda paixão aumenta em detrimento da substância. Ora, a alma é incorruptível. Logo, não tem paixões. Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Rm 7, 5): Porque, enquanto estávamos na carne, as paixões dos pecados, que havia pela lei, obravam em nossos membros. Ora, os pecados existem propriamente, na alma. Logo, também as paixões chamadas dos pecados.

SOLUÇÃO. ― A palavra sofrer tem tríplice acepção. Uma, comum, pela qual todo receber é sofrer, mesmo que o ser nenhum detrimento sofra; assim dizemos que o ar sofre quando é iluminado. Ora, isto é mais propriamente aperfeiçoar-se que sofrer. ― Num sentido próprio, empregamos a palavra sofrer para significar uma coisa recebida com exclusão de outra, o que de dois modos pode dar-se. Ora, é excluído o que não convém ao ser; assim, quando o corpo de um animal sara, dizemos que sofre porque recebe a saúde, por exclusão da doença. ― De outro modo, inversamente; assim, dizemos que estar doente é sofrer, porque recebemos a doença, por exclusão da saúde; e este é o modo mais próprio à paixão. Pois sofrer implica em alguma coisa ser atraída para o agente, porquanto, o ser que fica privado do que lhe é conveniente é considerado, sobretudo, como atraído para outro ser. E semelhantemente, Aristóteles diz que quando do menos nobre se gera o mais nobre há geração, absolutamente, e corrupção, relativamente; e ao inverso, quando do mais nobre é gerado o menos nobre. Ora, deste três modos a alma tem paixões. Assim, quanto à recepção, dizemos que sentir e compreender é de certo modo sofrer. Por outro lado, a paixão acompanhada de exclusão só existe seguida de alteração corpórea. Por onde, a paixão propriamente dita não pode convir à alma senão acidentalmente, a saber, na medida em que o composto comporta o sofrimento. Ora, há aqui diversidade de situações; assim, quando tal alteração se faz para pior mais propriamente se realiza a noção de paixão, do que quando se faz para melhor, e por isso a tristeza é paixão mais propriamente que a alegria.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ― Sofrer acompanhado de exclusão e de alteração é próprio da matéria, e por isso só afeta os seres compostos de matéria e forma. Mas, quando implica somente recepção, não afeta só e necessariamente a matéria, mas pode também afetar qualquer ser existente em potência. Ora, a alma, embora não seja composta de matéria e forma, encerra contudo uma certa potencialidade, em virtude da qual lhe convém o receber e o sofrer, e nesse sentido dizemos que inteligir é sofrer, conforme Aristóteles.

RESPOSTA À SEGUNDA. ― Sofrer e ser movido, embora não convenha à alma, em si mesma convém-lhe contudo acidentalmente, como diz Aristóteles.

RESPOSTA À TERCEIRA. ― A objeção colhe relativamente à paixão que implica alteração para pior; e tal paixão senão acidentalmente pode convir à alma; mas, em si mesma convém ao composto, que é corruptível.

Art. 2 — Se a paixão reside mais na parte apreensiva que na apetitiva.

(III Sent., dist. XV, q. 2, a . 1 qª 2;De Verit., q. 26, a . 3; De Dir. Nom., cap. II, lect. IV; II Ethic., lect. V). O segundo discute-se assim. ― Parece que a paixão reside mais na parte apreensiva que na apetitiva.

1. ― Pois, o que é primeiro, em qualquer gênero ocupa nesse gênero o primeiro lugar e é a causa do mais, como diz Aristóteles. Ora, a paixão existe na parte apreensiva antes de existir na apetitiva, pois esta não a sente sem que ela afete precedentemente aquela. Logo, a paixão reside mais na parte apreensiva que na apetitiva.

2. Demais. ― O que tem maior atividade tem menor passividade, pois a ação se opõe à paixão. Ora, a parte apetitiva é mais ativa que a apreensiva. Logo, nesta sobretudo reside a paixão.

3. Demais. ― Assim como o apetite sensitivo, também a potência apreensiva sensitiva é virtude de órgão corpóreo. Ora, a paixão da alma implica propriamente falando uma alteração corpórea. Logo, não está mais na parte apetitiva que na apreensiva sensitiva. Mas, em contrário, diz Agostinho: os movimentos da alma a que os Gregos chamam πχδη, e o latinos, como Cícero, perturbações, outros os denominam afecções ou afetos, e outros ainda, como em grego e mais expressivamente, paixões. Donde se conclui claramente que as paixões da alma são o mesmo que afecções; e como estas pertencem manifestamente à parte apetitiva e não à apreensiva, conclui-se que aquelas residem mais na primeira que na última.

SOLUÇÃO. ― Como já dissemos, o nome de paixão implica que o paciente é atraído pela ação do agente. Ora, a alma é atraída para o objeto externo, mais pela virtude apetitiva que pela apreensiva. Pois por meio daquela põe-se em relação com as coisas mesmas tais como são, e por isso diz o Filósofo que o bem e o mal, objetos da potência apetitiva, estão nas coisas mesmas. A virtude apreensiva porém não é atraída para as coisas em si mesmas, mas as conhece pela espécie delas, que tem em si ou recebe conforme o modo que lhe é próprio; por isso, no mesmo lugar diz Aristóteles, que a verdade e a falsidade, que pertencem à inteligência, não estão nas coisas, mas na mente. Por onde claramente se vê que a paixão em si mesma reside mais na parte apetitiva que na apreensiva.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ― A intensidade se comporta de modo contrário conforme é relativa à perfeição ou à deficiência. Em relação à primeira a intensidade supõe aproximação de um primeiro princípio, e é tanto maior quanto mais próxima se acha dele. Assim, a intensidade da luz num corpo lúcido varia com a aproximação do que é lúcido em máximo grau, e tanto mais lúcido é um corpo quanto mais próximo está deste último. Mas no atinente à deficiência, a intensidade varia, não com o aproximar-se do que é maximamente intenso, mas com o afastar-se da perfeição, pois nisto consiste a essência da privação e da deficiência. Por onde, quanto mais se afasta do termo último, tanto menos intensidade tem; e assim se explica que um defeito, pequeno sempre no princípio, aumente quanto mais progride. Ora, a paixão implica uma deficiência, pois é própria do ser potencial. Logo, os seres que se aproximam da perfeição primeira. ― Deus, pouco tem de potencialidade e de paixão; e o contrário se dá conseqüentemente com os que dele mais se afastam. E assim também, na potência da alma, que tem prioridade, a saber, a apreensiva, há menos do que constitui a essência da paixão.

RESPOSTA À SEGUNDA. ― A virtude apetitiva é considerada mais ativa porque é sobretudo o princípio do ato exterior; e é tal em virtude do princípio que a torna, sobretudo passiva, i. é, por se ordenar ao objeto em si mesmo; pois, pela ação exterior é que chegamos a alcançá-los.

RESPOSTA À TERCEIRA. ― Como já dissemos na primeira parte, um órgão da alma pode alterar-se de duplo modo. Primeiro, por transmutação espiritual, enquanto recebe a espécie da coisa. E isto se dá essencialmente como o ato da virtude apreensiva sensitiva; assim os olhos são imutados pelo objeto visível, não que fique colorido mas por receber a espécie da cor. Há porém outra transmutação do órgão ― a natural ― pela qual se altera a sua disposição natural; isso se dá, p. ex., com o corpo aquecido ou resfriado ou afetado de modo semelhante. E tal transmutação é acidental em relação ao ato da virtude apreensiva sensitiva; assim quando os olhos se cansam por causa da visão forçada ou se embotam pela veemência do objeto visível. Ora, esta espécie de transmutação se ordena em si ao ato do apetite sensitivo; por isso na definição dos movimentos da parte apetitiva inclui-se, materialmente, uma transmutação natural do órgão, e assim dizemos que a ira faz ferver o sangue no coração. Por onde é claro que a paixão em essência reside mais no ato da virtude sensitiva apetitiva, do que no da virtude sensitiva apreensiva, embora uma e outra seja ato de órgão corpóreo.

Art. 3 — Se a paixão reside mais no apetite sensitivo que no intelectivo.

(I, q. 20, a . 1, ad 1; III Sent., dist. XV, q. 2, a . 1, qª 2; IV dist. XLIX, q. 3, a . 1, qª 2, ad 1; De Verit., q. 26, a . 3; II Ethic., lect. V). O terceiro discute-se assim. ― Parece que a paixão não reside mais no apetite sensitivo que no intelectivo.

1. ― Pois, diz Dionísio, que Hieroteu, ensinado por uma diviníssima inspiração, não só aprendeu as coisas divinas, como teve a paixão delas. Ora, a paixão do divino não pode pertencer ao apetite sensitivo, cujo objeto é o bem sensível. Logo, a paixão reside no apetite intelectivo tanto como no sensitivo.

2. Demais. ― Quanto mais poderosa for uma atividade, tanto mais forte será a paixão correspondente. Ora, o objeto do apetite intelectivo, que é o bem universal, é mais poderosamente ativo que o do apetite sensitivo, que é o bem particular. Logo, a paixão reside essencialmente mais no apetite intelectivo que no sensitivo.

3. Demais. ― A alegria e o amor são considerados paixões. Ora, afetam também o apetite intelectivo e não só o sensitivo; do contrário, a Escritura não os atribuiria a Deus e aos anjos. Logo, as paixões não residem mais no apetite sensitivo que no intelectivo. Mas, em contrário, diz Damasceno, descrevendo as paixões animais: A paixão é um movimento da virtude apetitiva sensível provocado pela imaginação do bem ou do mal. Por outra: a paixão é um movimento da alma irracional provocado pela idéia do bem e do mal.

SOLUÇÃO. ― Como já dissemos, existe propriamente paixão onde há transmutação do corpo; e esta se encontra nos atos do apetite sensível, não só espiritual ― como na apreensão sensitiva ― mas também natural. O ato do apetite intelectivo, ao contrário, não requer nenhuma transmutação corpórea, porque esse apetite não é virtude de nenhum órgão. Por onde é claro, que a paixão, em essência, reside mais propriamente no ato do apetite sensitivo do que no do intelectivo; e isso também se vê claramente nas definições aduzidas de Damasceno.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ― No passo citado, paixão do divino significa afeto pelas coisas divinas e união com elas pelo amor, o que na verdade se realiza sem transmutação corpórea.

RESPOSTA À SEGUNDA. ― A magnitude da paixão depende não só da virtude do agente mas também da passibilidade do paciente; pois seres facilmente passíveis são-no em relação mesmo ao que é pouco ativo. Embora portanto, o objeto do apetite intelectivo seja mais ativo que o do sensitivo, contudo este é mais passivo.

RESPOSTA À TERCEIRA. ― O amor, a alegria e sentimentos semelhantes, quando se atribuem a Deus, aos anjos ou aos homens, como pertencentes ao apetite intelectivo, significam um ato simples da vontade com semelhança de efeito, sem paixão. Por isso, diz Agostinho: Os santos anjos punem sem ira e socorrem sem se perturbarem pela compaixão da miséria. E contudo as denominações de tais paixões lhes são aplicadas pelo uso ordinário da linguagem humana, para exprimirem uma certa conformidade de ação e não a fraqueza da paixão.