Suma Teológica

Summa Theologiae Quaestiones

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Quaestiones
prima pars secundae Q.53 →

Da diminuição e da corrupção dos hábitos.

Em seguida devemos tratar da diminuição e da corrupção dos hábitos. E sobre esta questão três artigos se discutem:

Art. 1 — Se o hábito pode perder-se.

(I, q. 89, a . 5). O primeiro discute-se assim. — Parece que o hábito não pode perder-se.

1. — Pois, o hábito é uma como segunda natureza, sendo por isso que as ações habituais são deleitáveis. Ora, a natureza não se perde, enquanto permanece o ser a que ela pertence. Logo, também o hábito se não pode perder enquanto permanecer o sujeito.

2. Demais — Toda desaparição da forma se dá ou pela alteração do sujeito, ou pela presença da forma contrária; assim, a doença desaparece com a corrupção da natureza animal ou com a superveniência da saúde. Ora, a ciência, que é um hábito, não pode desaparecer com a alteração do sujeito, porque o intelecto, que é o sujeito, é uma substância e não se corrompe, como já se disse. E semelhantemente também não pode desaparecer por nenhum contrário, pois as espécies inteligíveis não são contrárias entre si, como já se disse. Logo, o hábito da ciência não pode desaparecer de nenhum modo.

3. Demais — Toda alteração implica algum movimento. Ora, o hábito da ciência, existente na alma, não pode desaparecer por um movimento próprio da alma mesma, por que esta em si mesma não é movida. E só acidentalmente o é pelo movimento do corpo. Ora, nenhuma alteração corpórea pode desvanecer as espécies inteligíveis existentes no intelecto, pois que é o lugar das espécies, sem corpo; donde se conclui que nem pelos sentidos e nem pela morte os hábitos podem perder-se. Logo, o hábito da ciência não se pode perder. E por conseguinte, nem o da virtude, também existente na alma racional; e, como diz o Filósofo, as virtudes são mais permanentes que as disciplinas. Mas, em contrário, diz o Filósofo que o esquecimento e o engano são perdas da ciência. Ora, quem peca perde o hábito da virtude. E por atos contrários é que as virtudes se geram e corrompem, com já se disse.

SOLUÇÃO. — Dizemos que uma forma é eliminada absolutamente, pela sua contrária, e acidentalmente, pela corrupção do seu sujeito. Se, portanto, existir algum hábito cujo sujeito seja corruptível, e cuja causa tenha um contrário, esse poderá perder-se, dos dois modos, segundo bem o manifestam os hábitos corpóreos como a saúde e a doença. Os hábitos porém, cujo sujeito é incorruptível, não podem perder-se acidentalmente. Há contudo certos hábitos que, embora existentes principalmente num sujeito incorruptível, existem, secundariamente, num corruptível. Assim, o hábito da ciência existe, principalmente, no intelecto possível e, secundariamente, nas potências apreensivas sensitivas, como já dissemos. Por onde, por parte do intelecto possível o hábito da ciência não pode perder-se acidentalmente, senão só por parte das potências sensitivas inferiores. Por isso devemos examinar se esses hábitos podem, em si mesmos, perder-se. Porque, se houver um hábito que tenha algum contrário, ou por si mesmo ou em virtude da sua causa, esse poderá, em si mesmo, perder-se; não o poderá porém, se não tiver contrário. — Ora, é manifesto que a espécie inteligível existente no intelecto possível não tem nenhum contrário, como também o é que nada pode ser contrário ao intelecto agente, causa dessa espécie. Por onde, se existir algum hábito, no intelecto possível, causado imediatamente pelo intelecto agente, esse há-de ser incorruptível absoluta e acidentalmente. E tais são os hábitos dos primeiros princípios, tanto especulativos como práticos, que se não podem perder por nenhum esquecimento ou engano; por isso diz o Filósofo, que a prudência não se perde pelo esquecimento. — Há, por outro lado, no intelecto possível, um hábito causado pela razão, que é o das conclusões e se chama ciência. E essa causa pode ter dupla contrariedade. Uma, proveniente das proposições mesmas, das quais a razão procede; assim, à proposição — o bem é o bem — é contrária esta outra — o bem não é o bem — segundo o Filósofo. Outra, proveniente do processo mesmo da razão; é assim que um silogismo sofístico se opõe a um dialético ou demonstrativo. Por onde é claro que, pela razão falsa, pode perder-se o hábito da verdadeira opinião ou até da ciência. Por isso, diz o Filósofo, que o engano é a corrupção da ciência, como já dissemos. Há porém certas virtudes intelectuais residentes na razão mesma, conforme já se disse e com as quais se dá o mesmo que com a ciência ou a opinião. Por outro lado, outras, as virtudes morais, residentes na parte apetitiva da alma, em que se fundam também os vícios opostos. Assim, pois, como os hábitos da parte apetitiva são causados pela razão naturalmente motora dessa parte; assim também, pelo juízo da razão, movendo, de qualquer modo, para o termo oposto, que por ignorância, quer pela paixão ou ainda pela eleição, perder-se o hábito da virtude ou do vício.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Como já se disse, o hábito se assemelha à natureza mas, com certa deficiência. Por onde, como a natureza de um ser não pode, de nenhum modo, dele separar- se, o hábito, por seu lado, só dificilmente o pode.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Embora nada seja contrário às espécies inteligíveis, pode contudo haver contrário às proposições e ao processo da razão, como já se disse.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A ciência, quanto aos fundamentos mesmos do hábito, não pode ser alterada pelo movimento corpóreo; senão só quanto ao impedimento do ato, na medida em que o intelecto precisa, para o seu ato, das potências sensitivas, que podem sofrer impedimento proveniente da transmutação corpórea. Porém, pelo movimento inteligível da razão, o hábito da ciência pode corromper-se, mesmo quanto aos próprios fundamentos do hábito. E semelhantemente, pode corromper-se também o hábito da virtude. Contudo, a expressão — as virtudes são mais permanentes que as ciências — deve ser entendida, não relativamente ao sujeito ou à causa, mas ao ato; pois, o uso das virtudes é contínuo, durante toda a vida, o que não se dá com o das ciências.

Art. 2 — Se o hábito pode diminuir.

O segundo discute-se assim. — Parece que o hábito não pode diminuir.

1. — Pois, o hábito é uma qualidade e forma simples. Ora, o que é simples é possuído ou perdido na sua totalidade. Logo, o hábito, embora possa perder-se, não pode diminuir.

2. Demais — Tudo o que convém ao acidente convém-lhe em si mesmo ou em razão do seu sujeito. Ora, o hábito, em si mesmo, não aumenta nem diminui, pois do contrário se seguiria que uma espécie pode ser predicada, mais ou menos, dos seus indivíduos. Se portanto o hábito não pode diminuir, quanto à participação do sujeito, segue-se que lhe advém alguma propriedade, que não lhe é comum com o sujeito. Ora, a forma, à qual convém alguma propriedade que lhe não é comum com o seu sujeito, é separável, como já se disse. Donde resulta que o hábito é uma forma separável, o que é impossível.

3. Demais — A essência e a natureza do hábito, bem como a de qualquer acidente, consiste em concretizar-se num sujeito; por isso, qualquer acidente se define pelo seu sujeito. Se, pois, o hábito, em si mesmo, não aumenta nem diminui, também não poderá diminuir quando concretizado num sujeito e, portanto, não poderá diminuir de nenhum modo. Mas, em contrário, é da essência dos termos contrários recaírem sobre o mesmo objeto. Ora, o aumento e a diminuição são contrários. E portanto, se o hábito pode aumentar também pode diminuir.

SOLUÇÃO. — Os hábitos podem diminuir de dois modos, assim como, segundo já vimos, podem aumentar. E como eles aumentam pela mesma causa que os gera, assim diminuem pela mesma que os destrói; pois, a diminuição de um hábito é via para a sua destruição, e inversamente, a sua geração é um fundamento do seu aumentar-se.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O hábito, em si mesmo considerado, sendo uma forma simples, não lhe pode caber a diminuição. Mas o pode quanto ao modo diverso de participar, que provém da indeterminação da potência do ser mesmo que participa, e a qual pode participar diversamente de uma mesma forma, ou pode estender-se a um maior ou menor número delas.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A objeção colheria se a essência mesma do hábito não pudesse de nenhum modo diminuir. Ora, nós não dizemos isso, mas sim, que qualquer diminuição da essência do hábito tem o seu princípio, não nele, mas no ser que participa.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Seja qual for o sentido atribuído ao acidente, ele depende, por essência, do sujeito, porém de diferentes maneiras. Pois, tomado abstratamente, o acidente implica relação com o sujeito, a qual começa naquele e termina neste; assim, chama-se brancura àquilo pelo que uma coisa é branca. Por onde, na definição do acidente abstrato não se inclui o sujeito, como quase a primeira parte da definição, que é o gênero, mas como que a segunda, que é a diferença; assim, dizemos que a simitas é a curvidade do nariz. Mas, nos seres concretos, a relação começa no sujeito e termina no acidente; assim, chama-se branco àquilo que tem brancura. Por onde, na definição deste acidente incluímos o sujeito como gênero, que é a primeira parte da definição; assim, dizemos que simus é um nariz curvo. Por onde, o que convém aos acidentes por parte do sujeito, e não essencialmente, não se lhes atribui abstrata, mas concretamente. E tal é o que se dá com o aumento e a diminuição, em alguns deles; por isso dizemos que há mais ou menos, não brancura, mas, branco. E o mesmo se dá com os hábitos e outras qualidades, salvo que certos aumentam e diminuem por adição, como do sobredito resulta.

Art. 3 — Se o hábito destrói-se ou diminui só pelo cessar da atividade.

(IIª-IIªe, q. 24, a . 10; I Sent., dist. XVII, q. 2, a . 5). O terceiro discute-se assim. — Parece que o hábito não se destrói ou diminui só pelo cessar da atividade.

1. — Pois, os hábitos são mais permanentes que as qualidades passivas, como do sobredito resulta. Ora, as qualidades passivas não se destroem nem diminuem pela cessação do ato; assim, a brancura não diminui, embora não imute a vista, nem o calor, mesmo que não aqueça. Logo, também os hábitos não diminuem nem se destroem pela cessação do ato.

2. Demais — A corrupção e a diminuição são mutações. Ora, nada se muda sem uma causa motora. Logo, como a cessação do ato não implica nenhuma causa motora, conclui-se que essa cessação não pode causar a diminuição ou destruição do hábito.

3. Demais — Os hábitos da ciência e da virtude residem na alma intelectiva, que está fora do tempo. Ora, o que está fora do tempo não se destrói nem diminui pela diuturnidade temporal. Logo, nem os referidos hábitos se destroem ou diminuem embora permaneçam muito tempo sem se exercitarem. Mas, em contrário, diz o Filósofo que a disparição da ciência não são só é o engano, mas também, o esquecimento; e ainda: a falta de exercício dissolve muitas amizades. E pela mesma razão os outros hábitos das virtudes diminuem ou desaparecem pela cessação do ato.

SOLUÇÃO. — Como já se disse, um motor pode sê-lo de duplo modo. Por si mesmo, quando move em razão da própria forma; assim, o fogo aquece. Ou por acidente, como o que remove um obstáculo, e deste modo a cessação do ato causa a destruição ou a diminuição dos hábitos, enquanto remove o ato que impedia as causas destrutivas ou diminuidoras do hábito. Pois, como já dissemos, os hábitos, em si mesmos, desvanecem-se ou diminuem por obra do agente contrário. Por onde, os hábitos, cujos contrários aumentam no decurso do tempo e deviam ser eliminados pelo ato procedente do hábito, tais hábitos diminuem ou mesmo desaparecem totalmente pela diuturna cessação do ato, como bem o demonstram a ciência e a virtude. Pois é manifesto que o hábito da virtude moral torna o homem pronto no escolher o meio, nas ações e nas paixões. Ora, quem não emprega o hábito da virtude para moderar as paixões ou as atividades próprias, dá lugar necessariamente ao nascimento de muitas paixões e atos contrários ao modo da virtude, pela inclinação do apetite sensitivo e de outros móveis externos. Por isso, a virtude desaparece ou diminui pela cessação do ato. E o mesmo se dá por parte dos hábitos intelectuais, que tornam o homem pronto a julgar retamente das coisas imaginadas. Se pois cessarmos o uso desses hábitos, surgem as imaginações estranhas, que às vezes levam ao termo oposto, e a ponto tal que, se não forem de certo modo cortadas ou comprimidas, tornam-nos menos aptos para julgar retamente, dispondo-nos mesmo, por vezes e totalmente, ao contrário. Assim que, pela cessação do ato, diminui ou mesmo destrói-se o hábito intelectual.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Cessando de aquecer, também o calor desapareceria se isso provocasse o aumento do frio, que elimina o calor.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A cessação do ato leva à destruição ou diminuição, porque remove o obstáculo, como já se disse.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A parte intelectiva da alma, em si mesma, está fora do tempo; mas a sensitiva a ele está sujeita. Por onde, no decurso do tempo, transmuta-se quanto às paixões da parte apetitiva; e mesmo quanto às virtudes apreensivas; por onde, diz o Filósofo, que o tempo é causa do esquecimento.